quinta-feira, 26 de março de 2009

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.A Esperiência do Deserto na Relação

Por que os mortos são tão pesados para carregar?...
Porque eles têm o peso de todas as palavras que não puderam dizer.
Há silêncios pesados, silêncios que não têm fim: o deserto está entre nós... A distância que nos separa parece intransponível, não adianta gritar, nem explicar; ninguém nos responde. Estamos, no entanto, sentados à mesma mesa. Todavia, não existe mais comunhão. Dormimos na mesma cama, mas não dormimos mais nos mesmos sonhos; e cada manhã,, colados um ao outro, nos encontramos cada vez mais afastados...
Entre nós há o deserto, e não é mais o belo silêncio de nossas noites estreladas, mas o frio, a ausência à flor da pele. As palavras que nos saem da boca são escorpiões mortais, e cada um envenena o outro com o veneno das suas acusações ou das suas justificações.

O que o deserto nos pode ensinar?
Que o outro é um outro e que, numa verdadeira relação, não se pode prescindir da diferenciação, quer essa diferenciação assuma as formas agressivas do conflito ou as formas mais capciosas do tédio – “o outro é um peso para mim”, resiste às nossas vontades de apropriação, não se deixa reduzir ao mesmo. Ele não é eu. Ele pensa, vive e ama “de outro jeito”, e talvez seja esta revelação que o deserto nos traz, a revelação da alteridade – o outro irredutível às minhas vontades de prazer, de posses, carnais, afetivas , intelectuais e espirituais.

O deserto é um lugar de diferenciação. Não posso decepcionar-me, a não ser à medida das minhas expectativas. Eu esperava que o outro correspondesse a uma certa imagem de homem, de mulher, de casal, de amigo, de pai, de mãe, etc., imagem herdada de nossos pais e da sociedade. Eu amava “uma outra metade”, a metade que me faltava, sem dúvida.. Na verdade eu só me amava a mim mesmo, e agora descubro um outro que, na sua alteridade, não está mais aí para preencher as minhas carências, “tapar meu buraco”.

Ele é bastante ele mesmo ou talvez me ame bastante para me decepcionar, para não me responder como um espelho ou como um conjunto de complacências capaz de me encerrar em minhas reivindicações e frustrações infantis.
Eu me encontro, então, com “um outro inteiro”, que me força ou me convoca para a minha própria inteireza, essa inteireza que jamais se pavoneará como algo totalmente “acabado”, que sempre guardará uma sede para acolher o outro, mas não irá mais impor suas carências nem culpabilizará o outro por não preenchê-las tampouco.
A prova do deserto entre dois seres humanos conduz ao oásis de um verdadeiro encontro, encontro de duas liberdades que, além das regressões fusionais, simbióticas, instrumentais e operativas e dos impasses da separação, descobrem que são capazes de aliança.

Mas nem todos têm a coragem de atravessar o deserto. Aos primeiros sinais do esfriamento da pulsão, às primeiras afirmações das suas diferenças, irredutíveis, ou quando começa a fase da monotonia, o tédio do dia-a-dia, os dois reclamam:”Não te amo mais”, e vão procurar, alhures, recomeçar a mesma história, beber na mesma miragem, justamente no instante em que a verdadeira fonte não estava longe, quando chega ao fim esse silêncio, essa incompreensão, quando se perdoa o outro por ser um outro e onde enfim se vai talvez poder amá-lo e cantá-lo na sua diferença.
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Existem os desertos de areia e há também os desertos da ampulheta, o tempo de cada um na sua alteridade, o tempo da pressa, o tempo da calma, da tempestade, da regressão ao conhecido-sabido-controlável, o tempo da paciência, instante após instante, descobrir o milagre que fundamenta a nossa aliança. E esse deserto, o que é que nos ensina? Ensina o não apego, a dês-apropriação do outro. Amar uma pessoa é renunciar a possuí-la,, a fazer dela uma propriedade. Nessa renúncia nos é dada a alegria de ser, de ser-com, sem expectativas, sem cobranças, não, porém, sem lucidez, rigor e ternura.

“Vai para ti mesmo”, dizia a bem-amada ao bem-amado, no Cântico dos cânticos. Vai para o teu deserto, como vou também eu para o meu, lá, dando a volta às dunas, iremos encontrar o oásis, onde, libertados das nossas sedes, seremos o poço que aflora um para o outro.
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Há também, no coração da relação, o deserto do luto, luto físico ou afetivo – “falte-vos um só ser, e tudo estará despovoado”; falte-vos um só ser, e o mundo é um deserto. Quando se volta para a casa vazia, o caminho para lá parece não ter fim, os corredores parecem não ter fim, e o quarto que ressoava com nossas risadas ou nossas discussões, tem silêncios hostis – “e aquele dos dois que resta, se encontra no inferno.... Aí também precisamos aprender que o outro não nos pertence, mas antes de poder dizer-lhe ainda “vai para ti mesmo”, “vai para a tua luz”, novamente há um longo deserto a atravessar.

O que nos ensinará a morte (qualquer morte: física, da presença do outro na nossa vida; do afeto recebido do outro em determinado tempo; das ilusões; das expectativas, etc), senão aquilo que já aprendemos com a solidão? Saber que não existe para ninguém, não ser mais nada, ser apenas um grão de poeira no areal do tempo.

E aí posso ser também tentado por miragens, tentar comunicar-me com os mortos, “transcomunicação”, mesas que giram, escritas automáticas, tudo isso, poderia, talvez, proporcionar-me algum consolo. Consolo menor, porém, que o da minha solidão aceita, assumida, pois nessa solidão se descobre talvez o milagre de uma aliança, de uma “relação-outra”, que não é mais vivida sob os modos do espaço-tempo, uma espécie de comunhão dos santos, onde as qualidades daqueles que desapareceram ou daquilo que desapareceu pede que continuemos encarnando sem cessar essas qualidades.

Assim não é necessárias que eu lamente a bondade da minha mãe, a solidariedade do meu pai, a amizade e compreensão do meu amigo (a), mas preciso vivê-las ainda mais. Não me deixo mais levar pelas asas da sua presença que se desvaneceu, mas estou cada vez mais presente à terra e à vida que guarda as marcas de seu percurso, da nossa passagem comum.

Amar o outro é renunciar a possuí-lo, mesmo morto. É renunciar a que volte, descobrir que ele está sempre aí, em seu silêncio que não nos mete mais medo, em um deserto que se faz hospitaleiro para acolher tudo aquilo que temos de mais precioso, o essencial que nos resta quando nada mais nos resta.

Texto de Jean-Yves Leloup
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6 comentários:

Unknown disse...

Que bela meditação - O deserto -
Não sei, mas parece-me que nunca me senti dono de nada,mas continuo com medo do deserto.
O silêncio do deserto e o seu poder destrutivo assustam-me. Poderei apenas aproveitar esse tempo e esse medo para aprender a viver melhor.
O pior deserto será aquele que construímos para nos proteger ou para subjugar os outros.
Boa noite !

Anônimo disse...

Olá Silvia!

Podemos trocar mails?

O meu mail é: joao.c.silvano@gmai.com

Beijihos

Anônimo disse...

Olá Sylvia!
Você não me conhece, sou aqui de Salvador - Ba, sou também da área de saúde, já lhe enviei um e-mail, sobre o seu Blog: Estações da Vida, que gostei muito e convido-te pra de vez em quando fazerme uma visita no meu e se desejar, dar a sua opinião a respeito. O endereço é: http://saudeespiritualidade.blogspot.com/
Afetuosamente.
Francisco Oliveira.

Anônimo disse...

Visitei o seu blog! Amei!
A sensibilidade passeia faceira e se instala no coração da gente.
Um plantio benfazejo, uma partilha que, com certeza, acalenta, cala e consola.
Uma poeta/médica! Que lindo!
Uma resenha de belos versos, adornada por imagens maravilhosas!
Uma festa para os olhos e enlevo ao coração.
Voltarei mais vezes!

Temos uma identificação: o sangue nordestino, corajoso, sensível e valente, que nos faz um ser contente.

Beijo, moça!

Genaura Tormin
tormin@terra.com.br

Anônimo disse...

I found your blogs...
I would like to say you :
thank you for your wonderful passion.


See you maybe someday, :)


Charles Marsan
mars396@gmail.com

Jaqueline Sales disse...

As composições de Leloup são conhecidas por formarem a bíblia dos terapeutas, de forma que tenho em casa quase tudo dele. Já leu CUIDAR DO SER, Fílon e os terapeutas de Alexandria? E Caminhos da realização, DOS MEDOS DO EU AO MERGULHO NO SER? Há também a publicação Espírito na saude, que é bem parecida com o Cuidar do Ser.

Não deixe de ler CARENCIA E PLENITUDE, um livro fascinante. Deveria tentar fazer Psicologia Transpessoal, Sylvia. Você ia se dar bem...

Com saudades, deixo um BeijUivooooooooooooooooooooooooooooooooo
do tamanho do mundo