terça-feira, 2 de setembro de 2008

.
.
Lindolf Bell
.
"Menor que meu sonho não posso ser".
.
.
Uso raciocínio.
Procuro na razão.
Mas o que se revela, arcaico,
pungente,eterno e para sempre, vivo,
vem do buril do coração.
.
.
Serei breve
mas não tão breve
que a eternidade
escape do coração.
.
.
Do reino da indiferença
nada sei.
.
.
Minha linguagem
chama-se
viver.
.
.
Deixai vir a mim
a palavra
destino.
.
.
Lindolf Bell
(1938 - 1998)
.
.
A TAREFA — X
.
Onde abrigar o mundo
a não ser no coração?
.
Dos humanos alvos
é este o mais frágil
e, como uma hóstia,
há que reparti-lo,
pedaço e pedaço
entre as criaturas.
.
( Cartas aos Desconhecidos)
.
.
.
LEGADO
.
Deixarei por herança
não o poema
mas o corpo no poema
aberto aos quatro ventos
.
Pois todo poema
é verde e maduro,
em areia movediça
de angústia, solidão
Onde me debato
ainda que finja o contrário
em busca da verdade
e seu chão
.
Deixarei por herança
não o poema
Mas o corpo repartido
na viagem inconclusa
.
Pois todo o poema maduro
é um verde poema
E, mesmo acabado,
se estriba na inconclusão
Claro, sem esquecer,
o estratagema da paixão.
.
.
.
A poesia é o instrumento mais generoso
para eliminar a solidão, a indiferença,
o desencanto, o cinismo e a discriminação.
A solidão vale como espaço para refletir
em profundidade sobre nosso destino comum
e a ausência de solidariedade que deseqüilibra
o sistema social, acentua privilégios e exclusões.
Se o poema, muitas vezes, amadurece sem terras,
em solidão, sua existência (resistência)
se justifica para lembrar que o ser humano
mais uma vez não é ilha, mas partilha.
.
.
.
SEMANÁRIO
.
Na segunda-feira trabalho.
Afio enganos, anos e anos.
.
Na terça-feira trabalho.
Faço promessas de vagar
e de pressas.
.
.Na sexta-feira trabalho.
Descubro um buraco na calça.
Outro buraco na alma.
Liquido a traça.
.
Na quarta-feira trabalho.
Empilho o tédio em caixas.
Penduro em branco nas ruas,
as faixas.
.
.Na quinta-feira trabalho.
Esqueço um percevejo
no fundo da gaveta
do desejo.
.
Sábado trabalho.
No fonema, no poema.
No sonho entalado da verdade.
No dilema da felicidade.
.
No domingo
sento numa praça deserta.
E penso, covarde,
na próxima semana
escrita no livro da liberdade.
.
.
.
O POEMA DAS CRIANÇAS TRAÍDAS
.
Eu vim da geração das crianças traídas.
Eu vim de um montão de coisas destroçadas.
Eu tentei unir células e nervos, mas o rebanho morreu.
Eu fui à tarefa num tempo de drama.
Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.
Eu fui às cidades destruídas para viver os soldados mortos.
Eu caminhei no caos com uma mensagem.
Eu fui lírico de granas presas à respiração.
Eu visualizei as perspectivas de cada catacumba.
Eu não levei serragem ao corpo dos ditadores.
Eu recolhi as lágrimas de todas as mães numa bacia de sombra.
Eu tive a função de porta estandarte nas revoluções.
Eu amei uma menina virgem.
Eu arranquei das pocilgas um brado.
Eu amei os amigos de pés no chão.
Eu fui a criança sem ciranda.
Eu acreditei numa igualdade total.
Eu não fui canção, mas grito de dor.
Eu tive por linguagem materna, roçar de bombas, baionetas.
Eu fechei-me numa redoma para abrir meu coração triste.
Eu fui a metamorfose de Deus.
Eu vasculhei nos lixos para descobrir a pureza.
Eu desci ao centro da terra para colher o girassol que morava no eixo.
Eu descobri que são incontáveis os grãos no fundo do mar,
Mas são raros os que sabem o caminho da pérola.
Eu tentei persistir para além e aquém do ser humano, o que foi errado.
Eu procurei um avião liquidado para fazer a casa.
Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque enferrujado.
Eu construí uma flor de arame farpado para levar na solidão.
Eu deixei um balde no poço para salvar o resto do mundo.
Eu nasci conflito para ser amalgama.
Eu sou da geração das crianças traídas.
Eu tenho várias psicoses que não me invalidam.
Eu sou o automóvel a duzentos quilômetros por hora
Com o vento a bater-me na cara
Na disputa da ultima loucura que adoeceu.
Eu sou o antimundo na medida em que se procura o não existir.
Eu faço de tudo a fonte para alimentar a não limitação.
Eu sei que não posso afastar o corpo que não transcende.
Mas sei que posso fazer dele a catapulta para sublimar-me.
Meu coração é um prisma.
Eu sou o que constrói porque e mais difícil.
Eu sou o que não é contra, mas o que se impõe.
Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura.
E quando arranca, arranca até a raiz.
E põe a semente no lugar.
Meu coração é um prisma.
Eu sou o grande delta dos antros.
Os amigos mais atentos são as águas que me acorrem.
Eu sou o que está com você, solitário.
Quando evito a entrega, restrinjo-me.
Quando laboro a superfície é para exaurir-me.
Quando exploro o profundo é para encontrar-me.
Quando estribo os braços e pernas na praça o não é alterável.
É para andar a galope sobre a não liberdade.
Sem bandeiras que indiquem norte qualquer
Avanço das caliças.
Sem ponte fixo a espera, nem lar de maternas mãos,
Ou rua de reencontro
Instalo os meus adeuses.
Sem credo a não ser a humanidade dos que nos amam e desamam,
Anuncio a catarse numa sintaxe de construção.
Eu escreverei para um universo sem concessões.
Eu saberei que a morte não é esterco
Mas a infinita capacidade de colher no chão menos adubado,
Que poderei sorvê-la como laranja que esqueceu de madurar,
Que serei o alimento para o verme primeiro da madrugada,
Que a vida é a face que se incorpora em forma de espasmo,
Que tudo será diferente, que tudo será diferente, tão diferente…
Eu quero um plano de vida para conviver.
Ostentarei minha loucura erudita.
Eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos,
Eu manterei meu ódio a toda a arrogante mediocridade dos covardes.
Eu manterei meu ódio contra a hecatombe do pseudo-amor entre os homens.
Eu manterei meu ódio contra os fabricantes das neuroses de paz.
Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova
Eu denunciarei todas as fraudes da nossa sobrevivência.
Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores.
Eu me abastardarei da espécie humana.
Mas eu farei exceções a todos aqueles que souberam amar.
.
.
.
POEMA DO ÍNDIO XOKLENG
.
Se um índio xokleng
Subjaz
No teu crime branco
Limpo depois de lavar as mãos
.
Se a terra
De um índio xokleng
Alimenta teu gado
Que alimenta teu grito
De obediência ou morte
.
Se um índio xokleng
Dorme sob a terra
Que arrancaste debaixo de seus pés,
Sob a mira de tua espingarda
Dentro de teus belos olhos azuis
.
Se um índio xokleng
Emudeceu entre castanhas, bagas e conchas
De seus colares de festa
Graças a tua força, armadilha, raça:
Cala tua boca de vaidades
E lembra-te de tua raiva, ambição, crueldade
.
Veste a carapuça
E ensina teu filho
Mais que a verdade camuflada
Nos livros de história.
.
.
.
CARTA A UM ADOLESCENTE
.
Fizeste alusão ao trigo morto na tempestade,
ao teu pai, ao teu irmão,
à rosa desfeita,
e consentiste tudo quando murmurei:
"a dor maior
é sermos isentos de querer.
Sem prefixos
seremos mais livres.
Deixa os deuses.
São ambíguos".
.
Oh! Grande metáfora,
morte de tão pesada duração
bruma,
esplêndida revolta
de teu coração sem volta,
amálgama amada, emergência.
.
Lembro bem de teus olhos simples,
simples olhos fundos.
Das olheiras escuras
como limbo de peras.
.
Mas como explicar o ar de saque,
se em cada coração existe um dique
sempre prestes a transbordar,
se colhemos o doce crime um do outro?
.
Existência híbrida de infância e madurez!
Deslumbramentos,
quanta avidez fibra por fibra
e que desvairada confluência.
.
Poema integrante da série Cartas aos Desconhecidos.
In: BELL, Lindolf. Incorporação: doze anos de poesia, 1962/1973.
São Paulo: Quíron, 1974. (Sélesis, 3)
.
.
.
A BOMBA
.
A vida esplende no subsolo.
Todas as mães foram derrotadas.
.
Os meninos cultivam silêncios
O mundo confere medalhas.
.
A bomba é um brinquedo muito mais difícil.
Muito mais difícil mesmo.
.
A bomba é um gorjeio mutilado.
A bomba não sabe fazer.
A bomba tem o mundo nas mãos.
A bomba é o não-brinquedo.
.
.A bomba é uma gargalhada,
tubo de ensaio,
flor recolhida,
o não-homem.
.
A bomba,
a bomba-alimento-comum,
a bomba-alucinação,
.
a bomba-adeptos,
a bomba-hóspede de um hotel relativo
com a fachada escrita: MUNDO.
.
A bomba é um brinquedo muito mais difícil.
Muito mais difícil mesmo.
.
Poema integrante da série Arrebentação.
In: BELL, Lindolf. Incorporação: doze anos de poesia, 1962/1973.
São Paulo: Quíron, 1974. (Sélesis, 3)
.
.
.
AS PROFECIAS
.
depois de tudo
minha casa permanecerá nos fundos
.
minguantes novos
cidades mortas
ruas desconhecidas
.
barcos de vento
perdidos sons
.
foi lá que brinquei de longe
e perdi-me de mim
foi lá a primeira tosquia
quando me tiraram tudo
.
nem o leque
para afugentar a maturação
nem a haste
para defender-me das feras
nem o silêncio
para vestir-me no esquecimento
.
depois de tudo
minha casa permanecerá nos fundos
.
foi lá que brinquei de longe
e me perdi de mim
.
Poema integrante da série Incorporação. In: BELL, Lindolf.
Incorporação: doze anos de poesia, 1962/1973.
São Paulo: Quíron, 1974. (Sélesis, 3)
.
.
.
A ORDEM DO DIA
.
A ordem do dia
é ver tudo
mas não ver nada.
.
A ordem do dia
é comparecer ao banquete irreal,
comer faisões dourados em memória
da memória hermeticamente fechada
por um decreto.
.
A ordem vem de cima
para os de baixo
— claro e preciso
punhal do crime.
.
Nenhum pássaro,
rio nenhum.
Nenhum vento,
mar nenhum.
Nenhum estalido,
amor clandestino nenhum.
Nenhuma corda
de guitarra nenhuma.
Apenas os clarins oficiais
de poderosos senhores feudais.
.
nas ruas
nos vales
nos bares
nas escolas
nos aniversários
nos sonhos
nas praças
.
A ordem do dia
é uma ordem sombria.
Quem pretende repartir
o prato desta melancolia?
,
Poema integrante da série Arrebentação.
In: BELL, Lindolf. Incorporação: doze anos de poesia, 1962/1973.
São Paulo: Quíron, 1974. (Sélesis, 3)
.
.
.
DESTERRO
.
Aqui estou
Em pleno século XX
Desterrado por Platão.
Dentro do círculo da vida
Nõa mais aberto
Que um não.
.
Que faço neste tempo
Entre terra e céu de ironia?
Em coração caracol
E tempo de uvas verdes?
.
Faço um poema.
Me desfaço.
Me desfaço como um laço
De uma caixa de presentes vazia.
.
Enquanto me desfaço no poema
Afino o sentimento do mundo:
Desterro se faz de nenhum lugar.
E só se faz de saudade.
.
.
.
POEMA MATEMÁTICO
.
Me somo
E fico um
Me multiplico
E permaneço um.
.
Me divido.
E continuo um.
Me diminuo.
E resto um.
.
Me escrevo
E sou nenhum.
.
.
.
ASA DA PRIMEIRA IDADE
.
Longe de mim
Como a mais distante estrela.
Próxima de mim
Em meus olhos [e coração]
Que me permitem vê-la.
.
Pouco sobra da vaidade,
Da divisão dos tempos,
Da distribuição de afetos.
.
Ensina-me sobra, sombra, terra,
Aonde me perdi.
Ensina-me do orvalho
Que umedece o sonho de perfeição
Que não esqueci.
.
A minha aldeia chama-se:
Ninho de liberdade.
Mas onde terá ficado a asa
Da primeira idade?
.
.
.
.
Lindolf Bell nasceu em Timbó (SC) no dia 02 de novembro de 1938. Em 1944, sua mãe iniciou sua alfabetização em alemão. De 1945 a 1952 estudou em sua terra natal. Em 1953, matriculou-se no Curso Técnico em Contabilidade de Blumenau, concluído em 1955.
Voltou a Timbó. Em 1958, serviu à Polícia do Exército. Em 1959, no Rio de Janeiro (RJ), estudou Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, curso que não completou. No ano seguinte, retorna a Timbó. Em 1962, iniciou seus estudos no Curso de Dramaturgia na Escola de Arte Dramática de São Paulo, no qual se formou em 1964.Publicou seu primeiro livro de poesia, Os Póstumos e as Profecias, em 1962. Participou de diversos eventos: na Expressão de Novos Poetas, com poemas-murais, na biblioteca paulistana Mário de Andrade; do Movimento da Catequese Poética; foi autor do roteiro cinematográfico A Deriva para o filme experimental de Juan Seringo; declamou poemas no Show Contra, no Teatro Ruth Escobar, São Paulo SP. Em 1968, viajou para os Estados Unidos, onde integrou o grupo brasileiro no International Writing Program, na Universidade de Iowa. No seu retorno, passou a viver em Blumenau, onde foi professor de História da Arte na Fundação Universidade Regional. Participou na I Pré-Bienal de São Paulo, em 1970, com poemas-objetos. O autor faleceu no dia 10 de dezembro de 1998, na cidade de Blumenau (SC).
.
Obras:
.
1962- Os Póstumos e as Profecias. 1ª Edição. São Paulo: Massao Ohno, 1962.
1964 -Os Ciclos. 1ª Edição. São Paulo: Massao Ohno, 1964
1965- Convocação. São Paulo: Brasil, 1965.
1966- Curta Primavera. São Paulo: Brusco, 1966.
1966-A Tarefa. São Paulo: Papyrus, 1966.
1967 -Antologia Poética de Lindolf Bell. São Paulo: União, 1967.
1968 -Antologia da Catequese Poética.BELL, Lindolf. MATTOS, Luiz Carlos. JARDIM, Rubens. MÜLLER, Érico Max. SANTANA, Edson R. AGUIAR, Iosito e CARDOSO, Reni. Antologia da Catequese Poética. T. Paulista. São Paulo, 1968.
1971/1979- As Annamárias. 1ª Edição. São Paulo: Massao Ohno, 1971.(qualificada por Drummond como a mais importante obra lírico-amorosa em língua portuguesa dos últimos anos).
1974- Incorporação. 1ª Edição. São Paulo: Quiron, 1974.
1980 -As Vivências Elementares. 1ª Edição. São Paulo: Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1980.
1984 -O Código das Águas. 1ª Edição. São Paulo: Global, 1984.(melhor livro de poesia do ano - Associação Paulista dos Críticos de Artes).
1985 -Setenário. Florianópolis: Sanfona, 1985.
1987- Texto e Imagem. Oficinas de Arte. Florianópolis, 1987.
1994 -Pré-textos para um fio de esperança. BADESC. Florianópolis, 1994.
1993 -Iconographia. Editora Paralelo: 1993.
1994 -Requiem. Oficinas de Arte. Florianópolis, 1994.
.
Obras Traduzidas:
.
Italiano: In Poesia de Brasile d’Oggi (trav. Salvatore d’Anna) editrice i.l.a. Palma, 1968.Belga: In Revista “Nieeuw Vlamams Tijdschrift” (trad. Freddy de Vree), Antuérpia, 1969.Inglês: In Revista “Licor Store”, Iowa USA, 1969 in Brazilian Poets XX Century (trad. Elizabeth Bishop); e in Antologia daPoesia Contemporânea Brasileira (trad. José Neinstein), 1973.Espanhol: In Tiempo de Poesia Brasileña (trad. Adovaldo Fernandes Sampaio) Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 1974.Angola (África): poemas editados na revista MÁKUA nº 4.
.

.

.
.
.
.
.
.
.
.

Um comentário:

Anônimo disse...

Aparecieron los huesos literarios de septiembre (con P, septiembre con P).
Este mes comienza con Juan Rulfo, Raymond Carver, Augusto Monterroso, el diccionario de Bierce y Haroldo Conti.
Se puede pinchar aquí http://www.elperroelocuente.blogspot.com/
Saludos y gracias.
Jorge