sábado, 30 de agosto de 2008

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Sophia de Mello Breyner Andresen: a aliança do ser com o mundo através de imagens nítidas como a terra, o sol e o mar; a Sofia política, com uma visão ampla
da verdadeira democracia.
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"A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar"...
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(1919-2004)
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Nesta hora limpa da verdade é preciso
dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia
em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse
do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira
e não meia verdade.
Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida
O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silene de atenção
- Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.
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In Poemas Escolhidos
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Pudesse eu
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Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.
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Primavera
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Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.
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Tudo
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Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.
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À minha volta sinto naufragar
Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar...
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Se
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Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem.
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Mais
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Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.
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Noite de Abril
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Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.
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Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.
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Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
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Alguém que ela conhece.
E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.
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Quem és tu
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Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?
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A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.
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A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.
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Aquelas
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Aquelas que exaltadas e secretas
À janela espreitaram inquietas
O rumor do poente nas estradas,
Julgaram vir de ti essa passagem
Contida na beleza da paisagem.
Solitárias mordendo a sua fome
Percorrem o silêncio dos jardins
E vão gritando às sombras o teu nome.
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O Jardim e a casa
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Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
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Jardim perdido
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Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.
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A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.
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A luz trazia em si a agitação
De paraisos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.
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Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possivel e perdido.
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Jardim
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Alguém diz:
"Aqui antigamente houve roseiras"
-Então as horas
Afastam-se estrangeiras,
Como se o tempo fosse feito de demoras.
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Nunca mais
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Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa
-Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.
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E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.
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Corpo a corpo
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Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casa onde nunca ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça.
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Em todos os jardins
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Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
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Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
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Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
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Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
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Se todo o ser
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Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
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As fontes
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Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser vivo e total
,À agitação do mundo irreal,
E calma subirei até às fontes.
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Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
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Irei beber a luz e o amanhecer
Irei beber a voz dessa promessa
]Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.
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Que poderei
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Que poderei de mim mais arrancar
P'ra suportar o dom da tua mão,
Anjo rubro do vento e solidão
Que me trouxeste o espaço,o deus e o mar?
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No céu, a linha última das casas
É já azul, alada, imensa e leve.
Nenhum gesto, nenhum destino é breve
Porque em todos estão inquietas asas.
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Depois ao pôr do sol ardem as casas,
O céu e o fogo passam pela terra,
E a noite negra vem cheia de brasas
Num crescendo sem fim que nos desterra.
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Quando brilhou a aurora
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Quando brilhou a aurora, dissolveram-se
Entre a luz as florestasc encantadas,
Arvoredos azuis e sombras verdes,
Como os astros da noite embranqueceram
Através da verdade da manhã.
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E encontrei um país de areia e sol,
Plano, deserto, nu e sem caminhos,
Aí, ante a manhã, quebrado o encanto,
Nâo fui sol nem céu nem areal,
Fui só o meu olhar e o meu desejo,
Tinha a alma a cantar e os membros leves
E ouvia no silêncio os meus passos.
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Caminhei na manhã eternamente.
O sol encheu o céu, foi meio-dia,
Branco, a pique, sobre as coisas mortas,
Mais adiante encontrei a tarde líquida,
A tarde leve, cheia de distâncias,
Escorrendo de céus azuis e fundos
Onde as nuvens se vão pra outros mundos.
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Um ponto apareceu no horizonte,
Verde nos areais, como um sinal.
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Era um lago entre calmos arvoredos.
Não bebi a sua água nem beijei
O homem que dormia junto às margens.
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E ao encontro da noite caminhei.
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Sinal de Ti
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I
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Não darei o
Teu nome à minha sede
De possuir os céus azuis sem fim,
Nem à vertigem súbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.
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Não darei o
Teu nome à limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem às imagens de oiro que imagino
Nem a nenhuma coisa que sonhei.
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Pois tudo isso é só a minha vida,
Exalação da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.
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Mesmo no azul extremo da distância,
Lá onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama é só a minha vida.
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II
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Tu não nasceste nunca das paisagens,
Nenhuma coisa traz o Teu sinal,
É Dionysos quem passa nas estradas
E Apolo quem floresce nas manhãs.
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Não estás no sabor nem na vertigem
Que as presenças bebidas nos deixaram,
Não Te tocam os olhos nem as almas,
Pois não Te vemos nem Te imaginamos.
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E a verdade dos cânticos é breve
Como a dos roseirais: exalação
Do nosso ser e não sinal de Ti.
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III
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A presença dos céus não é a Tua,
Embora o vento venha não sei donde.
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Os oceanos não dizem que os criaste,
Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.
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Só o olhar daqueles que escolheste
Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas.
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Espera
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Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.
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Promessa
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És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.
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Hora
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Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
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Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
EsperaO peso dos meus gestos.
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E dormem mil gestos nos meus dedos.
Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
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Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.
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E de novo caminho para o mar.
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Cantata de paz
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Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
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Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
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A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
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D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
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Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
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Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919Lisboa, 2 de Julho de 2004) foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999.
Tem origem
dinamarquesa pelo lado paterno. O seu avô, Jan Henrik Andresen, desembarcou um dia no Porto e nunca mais abandonou esta região, tendo o seu filho João Henrique comprado, em 1895, a Quinta do Campo Alegre, hoje Jardim Botânico do Porto. Como afirmou em entrevista, em 1993 essa quinta "foi um território fabuloso com uma grande e rica família servida por uma criadagem numerosa".
Criada na velha aristocracia portuense, educada nos valores éticos e cristãos, foi dirigente de movimentos universitários católicos quando frequentava
Filologia Clássica na Universidade de Lisboa. Veio a tornar-se uma das figuras mais representativas de uma atitude política liberal, apoiando o movimento monárquico e denunciando o regime salazarista e os seus seguidores. Ficou célebre a sua Cantata da Paz "Vemos, Ouvimos e Lemos. Não podemos ignorar!" Casou-se, em 1946, com o jornalista, político e advogado Francisco Sousa Tavares e foi mãe de cinco filhos: uma professora universitária de Letras, um advogado e jornalista de renome (Miguel Sousa Tavares), um pintor e ceramista e mais uma filha que é terapeuta ocupacional e herdou o nome da mãe. Os filhos motivaram-na a escrever contos infantis.
Em
1964 recebeu o Grande Prémio de Poesia pela Sociedade Portuguesa de Escritores pelo seu livro Livro sexto. Já depois do 25 de Abril, foi eleita para a Assembleia Constituinte, em 1975, pelo círculo do Porto numa lista do Partido Socialista, enquanto o seu marido navegava rumo ao Partido Social Democrata.
Distinguiu-se também como contista (
Contos Exemplares) e autora de livros infantis (A Menina do Mar, O Cavaleiro da Dinamarca, A Floresta, O Rapaz de Bronze, A Fada Oriana, etc.). Foi também tradutora de Dante Alighieri e de Shakespeare e membro da Academia das Ciências de Lisboa. Para além do Prémio Camões, foi também distinguida com o Prémio Rainha Sofia, em 2003.
Sophia de Mello Breyner faleceu, aos 84 anos, no dia 2 de Julho de 2004 no
Hospital da Cruz Vermelha.
Desde 2005, no Oceanário de Lisboa, os seus poemas com ligação forte ao Mar foram colocados para leitura permanente nas zonas de descanso da exposição, permitindo aos visitantes absorverem a força da sua escrita enquanto estão imersos numa visão de fundo do mar.
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Obras:
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Poesias:
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Poesia (1944)
O Dia do Mar (1947)
Coral (1951)
No Tempo Dividido (1954)
Mar Novo (1958)
Livro Sexto (1962)
O Cristo Cigano (1962)
Geografia (1967)
Grades (1970)
11 Poemas (1971)
Dual (1972)
Antologia (1975)
O Nome das Coisas (1977)
Navegações(1983)
Ilhas (1989)
Musa (1994)
Signo (1994)
O Búzio de Cós (1997)
Mar (2001) - antologia organizada por Maria Andresen de Sousa Tavares
Primeiro Livro de Poesia (infanto-juvenil) (1999)
Orpheu e Eurydice (2001)
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Ficção:

Contos
Contos Exemplares (1962)
Histórias da Terra e do Mar (1984)
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Contos Infantis:
A Menina do Mar (1958)
A Fada Oriana (1958)
Noite de Natal(1959)
O Cavaleiro da Dinamarca (1964)
O Rapaz de Bronze (1965)
A Floresta (1968)
Árvore (1985)
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Teatro:
O Bojador
O Colar
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Ensaio:
Cecília Meireles (1956)
Poesia e Realidade (1960)
O Nu na Antiguidade Clássica (1975)
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Tradução:
A Anunciação de Maria (Paul Claudel)
O Purgatório (Dante)
Hamlet (William Shakespeare)
Muito Barulho por Nada (William Shakespeare)
Medeia (Eurípedes)
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Obras traduzidas:
França
Contos exemplares (Contes exemplaires), traduzidos do portugês por Alice Caffarel e Claire Cayron, Collection Littérature étrangère, Editions de la Différence, ISBN-10: 2729103325 e ISBN-13: 978-2729103323
Histórias da Terra e do Mar(Histoires de la Terre et de la Mer), contos traduzidos do português por Alice Caffarel e Claire Cayron, Collection Latitudes, Editions de la Différence, ISBN : 2729104704
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Prémios:
1964 - Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, atribuído a Livro Sexto.
1977 - Prémio Teixeira de Pascoaes
1983 - Prémio da Crítica, da Associação Internacional de Críticos Literários
1989 - Prémio D. Dinis, da Fundação da Casa de Mateus
1990 - Grande Prémio de Poesia Inasset / Inapa
1992 - Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças
1994 - Prémio 50 anos de Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores
1995 - Prémio Petrarca
1996 - Homenageada do "Carrefour des Littératures", na IV Primavera Portuguesa de Bordéus e da Aquitânia
1998 - Prémio da Fundação Luís Miguel Nava
1999 - Prémio Camões (primeira mulher portuguesa a recebê-lo)
2000 - Prémio Rosalia de Castro, do Pen Clube Galego
2001 - Prémio Max Jacob Étranger
2003 - Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana.
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Fontes:

http://www.maricell.com.br/sophiandresen/sophia_m_b_andresen.htm

http://www.abstract-art.com/abstraction/l2_grnf

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