sábado, 2 de agosto de 2008


Poemas da Madrugada
















Fernando Pessoa



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Como é por dentro outra pessoa
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Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
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Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
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Fernando Pessoa, 1934
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A ciência, a ciência, a ciência...
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A ciência, a ciência, a ciência...
Ah, como tudo é nulo e vão!
A pobreza da inteligência
Ante a riqueza da emoção!
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Aquela mulher que trabalha
Como uma santa em sacrifício,
Com quanto esforço dado ralha!
Contra o pensar, que é o meu vício!
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A ciência! Como é pobre e nada!
Rico é o que alma dá e tem.
[...]
Fernando Pessoa, 4-10-1934
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Sossega, coração! Não desesperes!
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Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
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Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
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Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
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Fernando Pessoa, 2-8-1933.
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Sonhei, confuso, e o sono foi disperso
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Sonhei, confuso, e o sonho foi disperso
Mas, quando dispertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo
Não são mais claros do que os sonhos são.
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Obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.
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Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.
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Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.
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Fernando Pessoa, 28-9-1933.
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Florbela Espanca


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A tua voz na primavera
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Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!
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Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!
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Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...
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Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!
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Florbela Espanca
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Esquecimento
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Esse de quem eu era e era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.
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Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
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Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...
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E desse que era eu meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos...!
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Florbela Espanca
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Espaço curvo e finito
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Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.
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José Saramago
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)
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Súplica
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Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
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Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
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Miguel Torga
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Apelo
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Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....
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Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o imite dos mortais.
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Miguel Torga

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