terça-feira, 5 de agosto de 2008

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Poemas da Madrugada
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Eugénio de Andrade
(1923 - 2005)
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Adeus
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Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.
Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.
Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
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Adeus
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Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
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Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
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Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
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Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.
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E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
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Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
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Adeus.
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Ainda sabemos cantar
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Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
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Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.
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Algumas Reflexões Sobre a Mulher
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Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.
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Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
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Na vulva sombria
é onde fazem o lume: ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.
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Nos olhos,
o relâmpago negro do frio.
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Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.
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O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
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Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
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Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
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É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
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São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
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Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.
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Sê tu a palavra
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1.Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
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2.Só o desejo é matinal.
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3.Poupar o coração
é permitir à mortec
oroar-se de alegria.
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4.Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.
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5.Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.
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6.Da chama à espada
o caminho é solitário.
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7.Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
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As Mãos e os Frutos
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Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
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Retrato Ardente
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No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
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Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
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Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
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Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
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O Silêncio
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Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
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e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
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quando azuis irrompem
os teus olhos
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e procuram
nos meus navegação segura,
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é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
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pelo silêncio fascinadas.
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É Urgente o Amor
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É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
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É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
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É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
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Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
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Nem sempre o corpo se parece
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Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro cante na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.
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Pequena elegia de setembro
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Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
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Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
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Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
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Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo, medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
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Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
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Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
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Eugénio de Andrade, poeta e escritor. Nasceu na Póvoa da Atalaia, Concelho do Fundão- Portugal. Desde cedo se dedicou à poesia, alcançando grande notoriedade com livros como As Mãos e os Frutos (1948) e Os Amantes sem Dinheiro (1950). Para além da criação poética original, Eugénio de Andrade é ainda autor de traduções e recriações em português de obras de Safo, Mariana Alcoforado, Federico García Lorca, Yannis Ritsos, René Char, etc., além das várias antologias temáticas da poesia e da terra portuguesas. Apesar de avesso à vida pública, a importância da sua obra tem sido reconhecida através da atribuição de vários prémios e condecorações. Assim, foi-lhe atribuído pelo Governo português o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada (1982) e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito (1988). Também o Município do Porto quis distinguir o poeta, atribuindo-lhe a Medalha de Mérito (1985) e a Medalha de Honra (1989) da Cidade. É membro da Academia Mallarmé (Paris) e membro fundador da Academia Internacional Mihai Eminescu (Roménia). Foi agraciado com o Prémio Camões em 2001. Algumas das suas obras são: As Palavras Interditas, Até Amanhã, Coração do Dia e Mar de Setembro.
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"O vírus do amor ao livro é incurável, e eu procuro inocular esse vírus no maior número possível de pessoas."
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José Mindlin - Bibliófilo e escritor brasileiro
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"Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos."
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Nelson Rodrigues
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Um comentário:

O Sibarita disse...

Oi dona menina! kkk cada poema retado em fia?

Você só coloca aqui coisa boa, que bom!

bjs
O Sibarita