quarta-feira, 6 de agosto de 2008

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Cassiano Ricardo
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Ficaram-me as penas
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O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um vôo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.
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Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glorias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.
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A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!
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Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.
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A física do susto
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O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.
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A Graça Triste
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Só me resta agora
Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.
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Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.
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Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior - de quem fica -
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.
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Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.
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É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
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É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde.
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A Medusa de Fogo
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A simples bulha surda
Do meu coração batendo
Poderá te acordar.
Mesmo a penugem da lua
Que cai sobre o ombro nu
Das árvores, tão de leve,
Poderá te acordar.
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A simples caída da bolha
D'água sobre a folha,
Por ser fria como a neve,
Poderá te acordar.
Só porque a rosa lembra
Um grito vermelho,
Retiro-a de diante do espelho
Porque - de tão rubra -
Poderá te acordar.
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E se nasce a manhã
Calço-lhe logo pés de lã,
Porque ela, com seus pássaros,
Poderá te acordar.
Mesmo o meu maior silêncio,
O meu mudo pé-ante-pé,
De tão mudo que é,
Não irá te acordar?
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Ó medusa de fogo,
Conserva-te dormida.
Com o teu fogo ruivo e meu,
Qual monstruosa ferida.
Como data esquecida.
Como aranha escondida
Num ângulo da parede.
Como rima água-marinha
Que morreu de sede.
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E eu serei tão breve
Que, um dia, deixarei
Também, até de respirar,
Para não te acordar.
ó medusa de fogo,
Dormida sob a neve!
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A Rua
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Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo.
É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
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A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
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Cassiano Ricardo Leite, nasceu em São João dos Campos (SP), em 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1974. Estudou Direito em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde diplomou-se em 1917. Retorna a São Paulo, dedicando-se ao jornalismo, à administração pública e à política. Com Menotti del Picchia e Plínio Salgado, funda o Movimento Verde-amarelo, participando da corrente nacionalista do Modernismo brasileiro. Em 1937, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. OBRAS Poesia: Dentro da noite (1915); A Frauta de Pã (1917); Vamos caçar papagaios (1926); Martim-Cererê ou O Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis (1928); O sangue das horas (1943); Um dia depois do outro (1947); Jeremias sem-chorar (1963); Os sobreviventes (1971).
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Um comentário:

Anônimo disse...

Sylvia, eu estou babando com tanta beleza. Sucesso nesse teu blogger,que já começou muito bem. Bjo.
Adriano Luna