sexta-feira, 1 de agosto de 2008










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Língua-mar
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A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.
Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar, viajando em todos nós.
No teu sal, singra errante a minha voz.
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O Sinal
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São Francisco de Assis,
ao atravessar a esquina,
junto com a multidão,
volta-se para o semáforo:
-Irmão Semáforo, fale-me do homem.

E a luz vermelha acendeu.
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Praia
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Aqui contemplas o horizonte e o verão madurando a carne. A maresia não vem do oceano, mas da maré dos instantes. Tudo é impuro enquanto vivemos. E teu corpo é esta enseada que se abre às minhas mãos trespassadas de algas e solidões vencidas.
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Vencidas? Conquistadas. Porque vivemos não do que sabemos, mas do que sonhamos. Viver é aportar a cada dia à beira de uma praia ou de um corpo.
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Aqui tens a areia e o verde abismo em frente para enlaçar tua cintura vertiginosa. Há relâmpagos e silêncios sobre a tua pele que alumiam a minha boca amanhecida. Sei que há tormentas. Naufrágios. Ressurgências. E que teu corpo é essa praia que se estende – provisória – para mim.
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Domingo
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Há sempre uma viagem que não fazemos. Há sempre uma fresta entre os minutos por onde irrompe o inesperado. Há sempre um agora, buscando no passado o seu futuro. E, sobretudo, há sempre o ardil do instante com suas pontes apodrecidas.
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Há sempre uma serpente repentina que se enrosca no meu pulso. Há sempre um vento chegando com suas vestes visionárias. Há sempre árvores que se ajoelham, resignadas, ao sol. Há na praia, sempre, os milênios que se debruçam. E há o sol da manhã. E a tristeza vespertina de corpos se tocando.
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No domingo, há sempre em mim um remorso flamejante; uma estátua que chora à beira-mágoa; um mendigo que celebra as feridas sazonadas; um bêbado com o hálito do poente. E um velho que delira ante as pegadas do silêncio.
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Domingo de missas e messes abandonadas. Domingo de cemitérios alados e chuvas marinhas. Domingo dos afogados. Domingo de pássaros sedentos. Domingo do outro, penetrando em mim.
Domingo, absurdamente domingo.
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O poeta Adriano Espínola (Fortaleza, 1952) é autor de livros como Fala, favela (1981), Em trânsito (1996) e Beira-Sol (1997). Como poeta convidado, participou, dentre outros eventos, do Festival Internacional do Mundo Latino, em Bucareste (1997), do 18º Salão do Livro, em Paris (1998) e do Congresso de Escritores Brasil-Portugal, no Porto (2000). Além do livro Táxi, publicado em inglês em 1992, tem poemas traduzidos para o francês, espanhol e italiano, publicados em diversas revistas e antologias. É autor também do ensaio As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregorio de Mattos (2000).

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