sábado, 13 de fevereiro de 2010



O que faz mais dura a solidão
é tirar de mim o que me falta

O que faz doer a solidão
é sua sede
é ter que arrancar
destas entranhas
um oceano de pedridade
de quem freqüentou a escola das facas
onde o que corta não é o gume
mas a falta da lâmina

O que fere não é a dor
é sua ausência assassina
pendurada nos cabides da alma

O que dói na solidão
é ter que amar
e amar é perder uma banda
é extrair um bonde de um homem
é extrair um bosque de uma mulher

O que mais fere na solidão
é sua inscrição cravada em brasa
no braço inútil do verso
uma família em torno da mesa
comendo pratos de silêncio

O que mais dói na solidão
é perder de mim
os outros que carrego
o segundo contra o primeiro
o terceiro que instiga
o quarto que dorme
o quinto que inicia
uma infinidade de outros

O que dói na solidão
é essa batalha que não acaba mais
entre guerreiros invisíveis
enquanto um boi passeia nas nuvens
e uma bicicleta muge
já que os verdes anos foram nulos
para quem nasceu maduro
para quem perdeu o ciso
na primeira dentição
e o cordão umbilical
nos bicos de um galo cego
Ia prás bandas da Cipaúba

Quanto dói
ver a velha mangueira se desfazendo
velha velha mangueira
por quanto tempo roerei
teus nós
por quanto tempo aguardarei
a manga que os passarinhos
bicam
no último dos galhos

O que dói na solidão
é o vira-lata sozinho
revirando o deserto
da cidade esquecida nas ruas
é ter um pai com muitas capas
todas com seus mistérios
se desfazendo em barro
por um caminho que mespera

O que mais dói na solidão
é ter na mão uma chave
que nada abre
que nada abre
O que mais dói na solidão
é não se poderem conter
os fantasmas que teimam
em saltar das sombras
de cada canto
São essas cobras
passeando em nossa cabeça
serpentário infindável

Difícil conviver
com a inesgotável solidão
mais difícil mesmo
é compor o verso
sem a vaca no divã
triste luna
rodonoite
áspera/mente

Só mesmo a roda grande
sescondendo em menor roda
Só mesmo a bicicleta
pendurada no trem noturno
Só mesmo a melancia
no rio em cheia
boiando
E os carneiros na mesa grande boiando
os teus olhos boiando na bandeja
os teus seios boiando no cuscus
os teus sais boiando nas iguarias
os teus ais boiando na
rememóría

O que mais dói
não é tua ausência
mas tua presença
estando longe
Lembra-te pois do açude
onde as águas ainda nos guardam
e os peixes nos carpem
em lágrimas de cumplicidade

Lembra-te da porta marcada
pelos mistérios de estar fechada
da casa retendo a mesa onde
saboreávamos os silêncios familiares
e escrevíamos a história da solidão
no livro branco do cotidiádo

A solidão mora lá e é manca
e usa bengala preta
e óculos no nariz
e se veste de uma veste que nunca muda
e tem na mão fechada a chave da
nossa libertação

Solidão solidão
meu coração é uma cidade
entre muralhas
esperando tuas chaves

Solidão solidão
certa vez em Mombaça
pedia esmolas p'ra São Sebastião
e desenhei teu corpo num surrão de mangas
e em bandas de coité de brejo
Desenhei teu corpo
num portão de vidro
éramos dois
que não eram dois
Éramos dois e só um sol
a claridade e seu dorso
a clara idade e sua dor

Solidão solidão
estamos em pleno mar e não
há mar nenhum
Estamos em pleno sono
e não há qualquer sonho
só minha mão como um rosto
cortando em muitos
o luar de agosto

O que dói na solidão é ter
Ter é estar preso
pesar pesadamente fixo
Não ter
é poder voar
Leve
levo-me às alturas
lavo-me candura
com o vôo esculpido
no azul azul
o azul está no prato
servido e sorvido
seres vivos
estamos nele
e ele em nós
pasto de pasto
repasto
solitariamente circular
rodando em torno da roda
A solidão eixa e deseixa
em roda
quanto mais vemos
menos vivemos
coração coração

Tenho ossos e mais ossos
a rodear
Que tenho feito senão rodear
nunca quebrei o fêmur do que está posto
nem a tíbia das situações sem jeito
Rodear é fugir
Solidade
quando chegamos ao trem
não havia trilho
No açude não havia água
só a dor do pesca/dor
dois meninos
engolindo uma duna
e uma duna engolindo um astro
uma foto de uma foto partida
onde o instante enterrou-se
A solidão é uma foto em que
se retorce
um inconformado instante

Solidão é desencontrar-se nos próprios passos
nos próprios ossos
perder o azul do firmamento
deixar de extrair gerânios
das pedras e de suas raízes
deixar de pentear os raios do sol
desarredondar a lua em luares
atravessados

Uma casa é uma caixa
de apenas portas
e abertas todas
uma casa é um avesso
um delírio espesso
vasto berro de barro
vagido e gozo
vôo espargido
de sonho e suspiro

Minha solidão é nódoa grudada
no ombro esquerdo do corpo
onde jaz a mala
das minhas desventuras

Minha mãe é a terra
e cumpro seu estatuto
em retomar ao seu ventre
meus filhos todos me seguirão
vastíssimos sonhos
de/verão

Tarde tarde
a solidão me salga as horas
a mulher que retém o homem
suas asas e águas
rio seco
areia de leito
íngua cortada
ferida tratada a urina
caborge
no meu pescoço levo teu pescoço
teus passos laçados
teu poder de vôo
teu grito guardado

Solidão é Laura de costas
Laura láurea loura
minha querida Laura
chorarei lágrimas douradas
quando tua nudez
se esculpir no relâmpago

Querida Laura
recupera aquele instante
em que nossos dedos se
tocaram
e nos perdemos

Recupera o instante anterior ao toque
quando a correnteza era mais forte em mim
o despencar mais vertical
retendo aqui esse abismo
que me engole

Recupera teu pai
e a cuia
que enchamos de esperanças
antes do leite

Recupera tua mãe
e a chuva fina
no telhado

Recupera as águas
que nos levaram
e lavaram
nossos sais
o céu azul
o curto mundo
onde só o coração era vasto

Recupera as curvas
dos caminhos

Recupera o fogo de
monturo em nós

Se não me queimo
não posso iluminar
se não te firo
não extraio de ti o coração
"rosa vermelha
do meu bem querer"

Na noite tarde
o que resta é meu corpo lá
e eu daqui
olhando sua/minha posição fetal
e essa augústia de perdê-lo de vista
Não sei quando perderei
essa dor
de perder a casca
a casa do ser não importa tanto
se tantas se erguem
Só o ser é uno
solitariamente nu
e eu molusco
a vida inteira tenho construído essa casca
que me expele e me retém
escravo da construção
construir é viver
terminar a casa é terminar-me
é expulsar-me da casca construída

Foi fácil colocar a flor
atrás da flor
e ficar de uma só flor
reinventando pomares

Foi fácil reverter a manhã
colocando alvoreceres
de sol a pino
Foi fácil engatinhar
pelas galáxias
semeando brancas nuvens

Houve no entanto
um difícil momento
mudar o destino da tarde

Solidão solidade
quando procurarei no bolso
o poema
encontrei aberta uma artéria
e teu rosto de fada
tua avó morrente
uma floresta escura

Quando procurei no bolso
o poema
encontrei um mistério esculpido
algumas lavadeiras
oito bicicletas
e uma tia puxando um terço
solitária

Quando procurei no bolso
o poema
te vi mais uma vez
prima/vera/ndo
Vi também uma dor sangrando
solitária

Nos nossos bolsos pulsam
os meninos que enxotam o demônio
escondido num cupim
e uma mulher de tarrafa
tentando pescar o mar
nas entranhas de um peixe

Nos nossos bolsos
pulsa o destino do poetar o
revirar cada coisa para
desvendar seus mistérios
enquanto meus mistérios
para trás vão ficando
cada vez mais distantes
cada vez mais distantes




Amar é somar
um mais um
e nunca conseguir
passar de um.

Amar é partir-se
quando se parte
no outro que partiu.

Batista de Lima
Poeta cearense



BATISTA DE LIMA, nascido em Lavras da Mangabeira (1949),no Ceará, embora pertença ao “grupo” da revista O Saco, pois seu primeiro livro, de poemas, é de 1977, passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002. Seminarista no Crato, formou-se em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especializou-se em Teoria da Linguagem na Universidade de Fortaleza, onde exerceu a chefia do Departamento de Letras e a diretoria do Centro de Ciências Humanas. Cursou o mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará. Iniciou-se como professor de Português em colégios de Fortaleza. Na vida literária deu os primeiros passos no Clube dos Poetas Cearenses. Mais tarde participou ativamente dos grupos Siriará, Arsenal, Catolé e Plural. De poesia publicou os livros Miranças (1977), Os Viventes da Serra Negra (1981), Engenho (1984) e Janeiro da Encarnação (1995). Na área do ensaio literário deu a lume, em 1993, Os Vazios Repletos e Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e, em 2000, O Fio e a Meada – Ensaios de Literatura Cearense. Membro da Academia Cearense de Letras.


Obras:
Miranças, 1977
Os Viventes da Serra Negra, 1981
Engenho, 1984
Os Vazios Repletos, 1993
Moreira Campos - A escritura da Ordem e da Desordem, 1993
Janeiro da Encarnação, 1995
O Pescador de Tabocal, 1997
A Literatura Cearense e a Cultura das Antologias, 1999
O Fio e A Meada: ensaios de Literatura Cearense, 2000
Janeiro É um Mês que não Sossega, 2002


Trecho de O Pescador de Tabocal
"O bom pescador pesca peixes e histórias do fundo das águas. O bom pescador cria as águas e as povoa de peixes e histórias"


Trecho de Engenho
"E se a vida é um açude / do encher ao secar / tu és um sangradouro / de abril a maio / um engenho em moagem / alma roupa de viagem / e não há seca que te vença / nem teu costume / de empurrar a sorte de vida afora / pendurando a dor / no cabide da precisão maior"




http://www.revista.agulha.nom.br/batis.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Batista_de_Lima

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