domingo, 30 de novembro de 2008

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MÃE
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............Um livro é um caminho. Minha mãe se transporta a um mundo de rainhas e faraós, paixões proibidas, complôs, pirâmides e areias quentes do deserto. As contrações uterinas estão se intensificando. Respira fundo e volta a ler.
.......... - Dona Ruth, pare com essa arrumação e vá ter essa menina em paz! Retorquiu a criada, velha cachimbeira, com muitos anos de estrada na arte de trazer vidas ao mundo.
..........- Tiquinha, quando chegar a hora, ela sai.
..........A anciã, contrariada, finge estar arrumando alguma coisa na cozinha.
..........Um filho é outro caminho...Essa mulher singular, guerreira, altiva, amorosa, está na quarta gestação. Todas as mães, mesmo as menos amorosas, as mais displicentes, merecem a nossa gratidão. Carregar no ventre, por nove longos meses, um ente, que lhes rouba os nutrientes, lhes causa enjôos e desconfortos e, após vir ao mundo,continua a lhes sugar a vitalidade, é ato de grande heroísmo. Mas filhos são dons de Deus e devem ser amados, sempre...
..........- Tiquinha, está na hora! E põe o livro na mesa da cabeceira.
..........Incontinênti, chega a criada, faz um exame e uma reza com folhas de pinhão roxo e de arruda.
..........- Vamos, dona Ruth, força! Já está coroando!
..........É noite. Chuva torrencial cai no telhado. Nossa casa, sem forro, está úmida e sinto frio. Mãinha já está ao meu lado, com uma lamparina nas mãos, velando por mim. O meu anjo da guarda lava-me os pés com água morna, sujos após longas horas de brincadeiras, cobre-me a rede com um toldo, para não me caírem respingos da chuva e aquece-me com mais um lençol. Quem tem uma mãe como a minha, o que mais quer na vida?
..........É o dia da formatura. Dona Ruth está linda e regozija-se com a vitória da filha. Quanto sacrifício, de quantas coisas absteve-se, para comprar-me os livros caros, o primeiro jaleco e os vindouros, o estetoscópio e o anel de esmeralda. De presente, deu-me uma colcha italiana, com um pedido para que eu a usasse somente em ocasiões muito especiais.
..........A morte é um caminho. Surge " a que nos rouba os tesouros", infalível, pujante, veloz. É Semana Santa... Não há palavras para expressar tais sentimentos...Um misto de impotência, de desespero...algo imensurável...uma dor horrível, a rebentar-nos as entranhas e o coração em milhões de pedaços!
..........E hoje é seu aniversário... Depois que ela partiu, as coisas mudaram. O seu violão, o cavaquinho e o pandeiro aqui estão, mas quem os tocará?Quem sentará na calçada à noite,aos domingos e entoará lindas canções? Quem regará as flores do jardim e conversará com elas? Quem enfeitará a casa para o Natal, encherá a árvore de presentes, fará o peru recheado da ceia e dirá: " Sylvia Narriman, venha cá." Quem, com a sua presença, inundará o nosso lar de paz e harmonia? No meu coração, semeio e colho flores de amor, carinho, respeito e gratidão - são da mãinha.
..........Aceitar a finitude da vida é um caminho...Um dia lá chegarei, com a certeza de que um anjo enfeitou-me todas as veredas, encheu-me os dias de luz e de alegria e deixou-me, como legado, a melhor parte de si: o seu amor de mãe, a guerreira...
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Sylvia Narriman Barroso
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Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento...

( Drummond)

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6 comentários:

Unknown disse...

Parece que em tempos já nos tinha falado de D.Ruth, mas hoje fá-lo de uma maneira tão especial que parece querer reviver esse tempo maravilhoso que passaram juntas ou querer acordar as memórias que ainda vivem lá dentro do seu coração.
Toda a Mulher que não é Mãe nunca saberá falar como a Sylvia falou e desvreveu a sua própria Mãe.
Parabéns.
Quem não guardará memórias da sua Mãe..........?
Ainda guardo os livros da escola primária da minha mãe. As outras coisas...A saudade, será só nossa!

Jaqueline Sales disse...

Sempre conto essa história às meninas, e elas riem dos mesmos detalhes que ilustram a mesma história - é o que elas dizem. Elas só não conseguem entender que, cada vez que conto alguma coisa sobre a "Mainha", abre-se no meu coração uma porta que tenta reanima-la, trazê-la de volta à vida, pois como sinto falta do colo, do olhar, do jeito, da presença no portão... esperando que virássemos a esquina para voltarmos às nossas casas.

..."EU ERA FELIZ E NÃO SABIA".

BeijUivoooooooooossss da Loba

Jaqueline Sales disse...

Ando tão chorosa!! Talvez não consiga escrever nada, talvez, porque as memórias fervilham... e são tantas que nem sei o que separar para postar. Mas vou sentar, pôr uma musica calma e deixar as emoções contarem tantas outras histórias que guardo no coração.

Sinto uma enooooorme saudade de vê-la no portão, também sentada naquela pedra, e lembro-me imensamente de como seus olhos pediam para que eu ficasse, quando ela me deixava no portão. Puxa, como a vida é engraçada! Lembro de tudo, sinto uma ausencia dolorida e sofrida, mas os olhos que ela mejogava antes de ir embora....

O que postou está lindo! Lindo e digno de muito orgulho porque as palavras certas, a emoção, contam aos outros o que, talvez, não dissemos à ela - que era uma grande e poderosa mulher.

Beijooooooosssssssssss

prafrente disse...

...e lá longe,
se memória desta vida se consente,
ela VIVERÁ eternamente...
e suas bençãos derramará
sobre o coração dos que ficaram....

Bela homenagem a uma grande Mãe, por parte de uma grande filha. Um coração generoso só pode gerar outro coração generoso...

um abraço

Anônimo disse...

Llegó diciembre para http://elperroelocuente.blogspot.com/
Nuevas notas: Horacio Quiroga, Chesterton y policial negro con Jim Thompson.
Saludos.
Jorge

prafrente disse...

Então Silvia, muito trabalho?

Boa semana