terça-feira, 9 de setembro de 2008

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Poemas da Madrugada
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Carlos Drummond: estrela de primeira grandeza!
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No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho...
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Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor...
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Meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só...
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E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

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Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
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(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa o insuportável mau cheiro da memória.
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Carlos Drummond de Andrade
( 1902 - 1987)
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PAROLAGEM DA VIDA
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Como a vida é muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.
Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!
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ESTRAMBOTE MELANCÓLICO
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Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam ao inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela d'alva
penetra longamente seu espinho
( e cinco espinhos são) na minha mão.
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O ENTERRADO VIVO
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É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
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É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
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É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a natiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
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E sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
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Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
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O QUARTO EM DESORDEM
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Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor
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que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar
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a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,
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verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.
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ACORDAR, VIVER
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Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
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Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
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Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
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Ninguém responde, a vida é pétrea.
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SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
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Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
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Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
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Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
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com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
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CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO
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Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
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CONSOLO NA PRAIA
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Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
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O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua
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Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
.Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
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.A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
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Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
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AINDA QUE MAL
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Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.
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POR QUÊ?
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Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer?
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SALÁRIO
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Ó que lance extraordinário:
aumentou o meu salário
e o custo de vida, vário,
muito acima do ordinário,
por milagre monetário
deu um salto planetário.
Não entendo o noticiário.
Sou um simples operário,
escravo de ponto e horário,
sou caxias voluntário
de rendimento precário,
nível de vida sumário,
para não dizer primário,
e cerzido vestuário.
Não sou nada perdulário,
muito menos salafrário,
é limpo meu prontuário,
jamais avancei no Erário,
não festejo aniversário
e em meu sufoco diário
de emudecido canário,
navegante solitário,
sob o peso tributário,
me falta vocabulário
para um triste comentário.
Mas que lance extraordinário:
com o aumento de salário,
aumentou o meu calvário!
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Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 31 de outubro de 1902 — Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987) foi um poeta, contista e cronista brasileiro. Nasceu em Minas Gerais, em uma cidade cuja memória viria a permear parte de sua obra, Itabira. Posteriormente, foi estudar em Belo Horizonte e Nova Friburgo. Formado em farmácia, com Emílio Moura e outros companheiros, fundou "A Revista", para divulgar o modernismo no Brasil. Durante a maior parte da vida foi funcionário público, embora tenha começado a escrever cedo e prosseguido até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de Janeiro, doze dias após a morte de sua única filha, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade. Além de poesia, produziu livros infantis, contos e crônicas.
Poesia

Foto do Memorial Carlos Drummond de Andrade, em Itabira - MG.
Alguma Poesia (1930)
Brejo das Almas (1934)
Sentimento do Mundo (1940)
José (1942)
A Rosa do Povo (1945)
Claro Enigma (1951)
Fazendeiro do ar (1954)
Quadrilha (1954)
Viola de Bolso (1955)
Lição de Coisas (1964)
Boitempo (1968)
A falta que ama (1968)
Nudez (1968)
As Impurezas do Branco (1973)
Menino Antigo (Boitempo II) (1973)
A Visita (1977)
Discurso de Primavera (1977)
Algumas Sombras (1977)
O marginal clorindo gato (1978)
Esquecer para Lembrar (Boitempo III) (1979)
A Paixão Medida (1980)
Caso do Vestido (1983)
Corpo (1984)
Amar se aprende amando (1985)
Poesia Errante (1988)
O Amor Natural (1992)
Farewell (1996)
Os ombros suportam o mundo
Futebol a arte (1970)

Antologia poética

A última pedra no meu caminho (1950)
50 poemas escolhidos pelo autor (1956)
Antologia Poética (1962)
Antologia Poética (1965)
Seleta em Prosa e Verso (1971)
Amor, Amores (1975)
Carmina drummondiana (1982)
Boitempo I e Boitempo II (1987)
Minha morte (1987)

Infantis

O Elefante (1983)
História de dois amores (1985)
O pintinho (1988)

Prosa

Confissões de Minas (1944)
Contos de Aprendiz (1951)
Passeios na Ilha (1952)
Fala, amendoeira (1957)
A bolsa & a vida (1962)
Cadeira de balanço (1966)
Caminhos de João Brandão (1970)
O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972)
De notícias & não-notícias faz-se a crônica (1974)
Os dias lindos (1977)
70 historinhas (1978)
Contos plausíveis (1981)
Boca de luar (1984)
O observador no escritório (1985)
Tempo vida poesia (1986)
Moça deitada na grama (1987)
O avesso das coisas (1988)
Auto-retrato e outras crônicas (1989)
As histórias das muralhas (1989)
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