quinta-feira, 29 de abril de 2010

Das moscas da praça pública ( Trecho do " Assim falava Zaratustra" )



“Foge, meu amigo, para a tua soledade! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos.

Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar.

Onde cessa a soledade principia a praça pública, onde principia a praça pública começa também o ruído dos grandes cômicos e o zumbido das moscas venenosas.

No mundo as melhores coisas nada valem sem alguém que as represente; o povo chama a esses representantes grandes homens.

O mundo compreende mal o que é grande, quer dizer, o que cria; mas tem um sentido para todos os representantes e cômicos das grandes coisas.

O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim “anda o mundo”.

O cômico tem espírito, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz crer mais energicamente — crer em si mesmo.

Amanhã tem uma fé nova, e depois de amanhã outra mais nova. Possui sentidos rápidos como o povo, e temperaturas variáveis.

Derribar: chama a isto demonstrar. Enlouquecer: chama a isto convencer. E o sangue é para ele o melhor de todos os argumentos.

Chama mentira e nada a uma verdade que só penetra em ouvidos apurados. Verdadeiramente só crê em deuses que façam muito ruído no mundo.

A praça pública está cheia de truões ensurdecedores, e o povo vangloria-se dos seus grandes homens. São para eles os senhores do momento.

O momento oprime-o e eles oprimem-te a ti, exigem-te um sim ou um não. Desgraçado! Queres colocar-te entre um pró e um contra?

Não invejes esses espíritos opressores e absolutos ó! amante da verdade! Nunca a verdade pendeu do braço de um espírito absoluto.

Torna ao teu asilo, longe dessa gente tumultuosa; só na praça pública assediam uma pessoa com o “sim ou não?”.

As fontes profundas têm que esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade.

Tudo quanto é grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da glória viveram sempre os inventores de valores novos.

Foge, meu amigo, para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas.

Foge para onde sopre um vento rijo.

Foge para a tua soledade. Viverás próximo demais dos pequenos mesquinhos. Foge da sua vingança invisível! Para ti não mais que vingança.

Não levantes mais o braço contra eles!

São inumeráveis, e o teu destino não é ser enxota-moscas!

São inumeráveis esses pequeninos e mesquinhos; e altivos edifícios se têm visto destruídos por gotas de chuva e ervas ruins.

Não és uma pedra, mas já te fenderam infinitas gotas. Infinitas gotas continuarão a fender-te e a quebrar-te.

Vejo-te cansado das moscas venenosas, vejo-te arranhado e ensangüentado, e o teu orgulho nem uma só vez se quer encolerizar.

Elas desejariam o teu sangue com a maior inocência; as suas almas anêmicas reclamam sangue e picam com a maior inocência.

Mas tu, que és profundo, sentias profundamente até as pequenas feridas, e antes da cura já passeava outra vez pela tua mão o mesmo inseto venenoso.

Pareces-me altivo demais para matar esse glutões; mas repara, não venha a ser destino teu suportar toda a sua venenosa injustiça!

Também zumbem à tua roda com os seus louvores. Importunidades: eis os seus louvores. Querem estar perto da tua pele e do teu sangue.

Adulam-te como um deus ou um diabo! choramingam diante de ti como de um deus ou de um diabo. Que importa?

São aduladores e choramingas, nada mais.

Também sucede fazerem-se amáveis contigo; mas foi sempre essa a astúcia dos covardes. É verdade; os covardes são astutos!

Pensam muito em ti com a alma mesquinha. Suspeitam sempre de ti. Tudo o que dá muito que pensar se torna suspeito.

Castigam-te pelas tuas virtudes todas.

Só te perdoam verdadeiramente os teus erros.

Como és benévolo e justo, dizes: “Não têm culpa da pequenez da sua existência”. Mas a sua alma acanhada pensa: “Toda a grande existência é culpada”.

Mesmo que sejas benévolo com eles, ainda se consideram desprezados por ti e pagam o teu benefício com ações dissimuladas.

O teu mudo orgulho contraria-os sempre, e alvorotam quando acertas em ser bastante modesto para ser vaidoso.

O que reconhecemos num homem infamamos-lhe também nele. Livra-te, portanto, dos pequenos.

Na tua presença sentem-se pequenos, e sua baixeza arde em invisível vingança contra ti.

Não notaste como costumávamos emudecer quando te aproximava deles, e como as forças os abandonavam tal como a fumaça que se extingue?

Sim, meu amigo; és a consciência roedora dos teus próximos, porque não são dignos de ti. Por isso te odeiam e quereriam sugar-te o sangue.

Os teus próximos hão de ser sempre moscas venenosas. E o que é grande em ti deve precisamente torná-los mais venenosos e mais semelhantes às moscas.

Foge, meu amigo, para a tua soledade, para além onde sopre vento rijo e forte. Não é destino teu ser enxota-moscas”.

Assim falava Zaratustra.



Assim falou Zaratustra (em alemão Also sprach Zarathustra) é um livro escrito entre 1883 e 1885 pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que influenciou significativamente o mundo moderno. O livro foi escrito originalmente como três volumes separados em um período de vários anos. Depois, Nietzsche decidiu escrever outros três volumes mas apenas conseguiu terminar um, elevando o número total de volumes para quatro. Após a morte de Nietzsche, ele foi impresso em um único volume.
O livro narra as andanças e ensinamentos de um filósofo, que se auto-nomeou Zaratustra após a fundação do Zoroastrismo na antiga Pérsia. Para explorar muitas das idéias de Nietzsche, o livro usa uma forma poética e fictícia, freqüentemente satirizando o Novo testamento.
O centro de Zaratustra é a noção de que os seres humanos são uma forma transicional entre macacos e o que Nietzsche chamou de Übermensch, literalmente "além-do-homem", normalmente traduzido como "super-homem". O nome é um dos muitos trocadilhos no livro e se refere mais claramente à imagem do Sol vindo além do horizonte ao amanhecer como a simples noção de vitória.
Amplamente baseado em episódios, as histórias em Zaratustra podem ser lidas em qualquer ordem. Mas aconselha-se que se leia em ordem, para melhor entendimento.
A razão pela qual o livro possui uma linguagem, por muitos interpretada como difícil, é que o conhecimento é algo que só pode vir de dentro - Por exemplo, no lugar de Zaratustra falar "O homem deve ser superado!", Nietzsche faz com que o leitor em si chege a essa conclusão; Como resultado, é uma forma de escrita, de comunicação mais eficaz do que a tradicional linguagem clara e de facílimo entendimento.
Zaratustra contém a famosa frase "Deus está morto", embora esta também tenha aparecido anteriormente no livro Die fröhliche Wissenschaft (A Gaia Ciência) de Nietszche.
Os dois volumes finais não terminados do livro foram planejados para retratar o trabalho missionário de Zaratustra e sua eventual morte.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra

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