domingo, 22 de fevereiro de 2009

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Aquela pedra dormindo,
parada dentro do tempo,
recebendo sol e chuva,
desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
ela sou eu.
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Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
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Adalgisa Nery
(29 de outubro de 1905 — 7 de junho de 1980)
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Repouso
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Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela
canção das colheitas
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem
os frutos,
Antes que os insetos se alimentem das folhas
entreabertas.
Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo
agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.
Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito
amada.
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De As Fronteiras da Quarta Dimensão (1951)
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Mistério
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Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por
[ mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu
[ nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.
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De Cantos da Angústia (1948)
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Escultura
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Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...
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De A Mulher Ausente (1940)
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Poema natural
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Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
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De Poemas (1937)
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Poema ao farol da Ilha Rasa
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O aviso da vida
Passa a noite inteira dentro do meu quarto
Piscando o olho.
Diz que vigia o meu sono
Lá da escuridão dos mares
E que me pajeia até o sol chegar.
Por isso grita em cores
Sobre meu corpo adormecido ou
Dividindo em compassos coloridos
As minhas longas insônias.
Branco
Vermelho
Branco
Vermelho
O farol é como a vida
Nunca me disse: Verde.
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De Poemas (1937)
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Cemitério Adalgisa
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Moram em mim
Fundos de mares, estrelas-d'alva,
Ilhas, esqueletos de animais,
Nuvens que não couberam no céu,
Razões mortas, perdões, condenações,
Gestos de amparo incompleto,
O desejo do meu sexo
E a vontade de atingir a perfeição.
Adolescências cortadas, velhices demoradas,
Os braços de Abel e as pernas de Caim.
Sinto que não moro.
Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas
É habitada pelos corpos.
Moram em mim
Gerações, alegrias em embrião,
Vagos pensamentos de perdão.
Como na terra das sepulturas
Mora em mim o fruto podre,
Que a semente fecunda repetindo a vida
No sereno ritmo da Origem.
Vida e morte,
Terra e céu,
Podridão, germinação,
Destruição e criação.
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De Poemas (1937)
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A espera
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Amado... Por que tardas tanto?
As primeiras sombras se avizinham
E as estrelas iniciam a noite.
Vem...
Pois a esperança que se acolheu em meu coração
Vai deixá-lo como um ninho abandonado nos penhascos.
Vem... Amado...
desce a tua boca sobre a minha boca
Para a tua alma levar a minha alma
Pesada de sofrimento!
Vem...
Para que, beijando a minha boca
Eu receba a sensação de uma janela aberta.
Amado meu...
Por que tardas tanto?
Vem...
E serás como um ramo de rosas brancas
Pousando no túmulo da minha vida...
Vem amado meu.
Por que tardas tanto?
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Poesia entre o cais e o hospital
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Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no mar
E a garganta do homem em gemidos no ar.
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Poema da amante
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Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
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Pensamentos que reúnem um tema
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Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranqüilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.
Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossívelE nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.
Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.
Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença,
Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.
Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.
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Adalgisa nasceu menina pobre e teve uma infância triste. Era filha de um modesto funcionário da prefeitura do Rio de Janeiro e ficou órfã de mãe aos 8 anos de idade. Estudou como interna em um colégio de freiras e, naquela época, já era vista como "subversiva" por defender as "órfãs" (categoria comum nos colégios religiosos da época), consideradas subalternas e maltratadas. Por essa razão, acabou sendo expulsa da escola. Portanto, única educação formal que recebeu na vida foi a do curso primário, feito dos 9 aos 12 anos.
Aos 15 anos apaixonou-se por um vizinho, o pintor Ismael Nery, um dos precursores do Modernismo no Brasil, com quem casou aos 16 anos. O casamento durou 12 anos, até a morte do pintor em 1934. A partir do casamento, Adalgisa mergulhou em uma vida trepidante, que lhe proporcionou a entrada em um sofisticado circuito intelectual graças a freqüentes reuniões em sua casa, uma estada de dois anos na Europa com o marido, e a conseqüente aquisição de cultura. Mas a vida de Adalgisa foi também muito marcada pelo sofrimento e pela relação conflituosa, muitas vezes violenta, com o marido. O casal teve sete filhos, todos homens, mas somente o mais velho, Ivan, e o caçula, Emmanuel sobreviveram.
Em 1959 publicou o romance autobiográfico A Imaginária, que se tornou seu maior sucesso editorial. Adalgisa, usando como alter ego a personagem Berenice, descreveu como o fascínio que sentia pelo marido no início do casamento foi substituído por um verdadeiro sentimento de terror pela violência que ele podia assumir na vida cotidiana.
Viúva aos 29 anos, sem muitos recursos e com dois filhos para criar, Adalgisa foi trabalhar primeiro na Caixa Econômica, mas depois conseguiu arranjar um cargo no Conselho do Comércio Exterior do Itamaraty.
Em 1937 lançou um primeiro livro de poesia, intitulado Poemas. Em 1940 casou-se com o jornalista e advogado Lourival Fontes, que era o diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado por Getúlio Vargas em 1939, para difundir a ideologia do Estado Novo.
Seguiu o marido em funções diplomáticas, em Nova York de 1943 a 1945 e como embaixador no México em 1945. No México desenvolveu amizade com os pintores Diego Rivera, José Orozco (ambos a retrataram), Frida Kahlo, David Siqueiros e Rufino Tamayo. Em 1952, viajou novamente àquele país, como embaixadora plenipotenciária, para representar o Brasil na posse do presidente Adolfo Ruiz Cortines.
O casamento com Lourival durou 13 anos e a separação ocorreu quando ele se apaixonou por outra mulher. Em razão do grande sofrimento, e apesar de seu valor literário ser reconhecido não só no Brasil como na França, Adalgisa resolveu destruir a própria fama e renegar sua obra. A partir daí, tornou-se jornalista, escrevendo para o jornal Última Hora e política. Foi eleita deputada três vezes, primeiro pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e depois, no tempo do bipartidarismo, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1969 teve o mandato e seus direitos políticos cassados.
Pobre e desamparada, sem ter onde morar, passou parte dos anos 1974-1975 em uma casa do comunicador Flávio Cavalcanti, em Petrópolis, onde viveu como reclusa. Contrariando seu propósito de nunca mais dedicar-se à literatura, escreveu e publicou ainda dois livros de poesia, dois de contos, um de artigos e um romance, Neblina. O romance foi dedicado a Flávio Cavalcanti, reconhecido como "dedo-duro", em gratidão pelo acolhimento que lhe dera. No conflito entre o que seria "politicamente correto" e a lealdade a um amigo, Adalgisa escolheu, sem hesitar, o caminho do afeto. Em razão disso, o livro foi ignorado pela crítica.
Em maio de 1976, sem ter doença alguma, ela resolveu internar-se em uma casa de repouso de idosos, em Jacarepaguá. Um ano mais tarde, sofreu um acidente vascular cerebral e ficou afásica e hemiplégica. Três anos mais tarde, Adalgisa faleceu.

Obras:
Poemas, 1937
A mulher ausente (poemas), 1940
Og (contos), 1943
Ar do deserto (poemas), 1943
Cantos de angústia (poemas), 1948
As fronteiras da quarta dimensão (poemas), 1952
A imaginária (romance), 1959
Mundos oscilantes (poemas) 1962
Retrato sem retoque (crônicas), 1966
22 menos 1 (contos), 1972
Neblina (romance), 1972
Erosão (poemas), 1973

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3 comentários:

Unknown disse...

Não é fácil entender estes poemas.
Mulher sofrida e tambem metida no seu interior. Parece que o seu ponto forte é o sofrimento que transparece na vida e nos poemas que vai redigindo quase por acidente.
Gostei de ler
Voltarei pois numa segunda leitura ou numa trceira. Talves consiga ver depois o que agora me escapa

Unknown disse...

Estações da Vida disse...
Olá, Luís. Na verdade, fiz esse poema para um grande amor, único, intenso, verdadeiro...em um momento de dúvidas...daí, você o sentir "inacabado", como ele o está...Falta-lhe algo, uma dúvida paira no ar, não é assim? Pois eu o fiz com esse propósito e, até hoje, só você captou essa dúvida...Grande abraço.

Sylvia Narriman Barroso
www.passagensemarcas.blogspot.com
www.sylvianarriman.blogspot.com

22 de Fevereiro de 2009 7:01


Estações da Vida disse...
Meu amigo engana-se: sou e estou muito feliz. Na verdade, acho que a vida tem me oferecido muitos momentos felizes, plenos, intensos, mais até do que mereço...Digo-lhe mais: viver é uma aventura, cheia de perdas e ganhos e encaro tudo isso como um desafio...o de procurar sempre dar o melhor de mim em tudo o que faço...

22 de Fevereiro de 2009 17:54


direitinho disse...
Bom dia e boa disposição
Peço-lhe desculpa, mas o meu comentário foi referente aos poemas e obras que publicou no seu blogue.
Nunca me atreveria a dirigir-lhe um comentario a si ou a qualquer outra pessoa que não conheça e ame profundamente para lhe dizer algo assim de pessoal.

22 de Fevereiro de 2009 20:02


direitinho disse...
Adalgisa Nery

prafrente disse...

Hoje é dia de Carnaval em Portugal.Apesar de estarmos na primavera o calor foi de verão.Dei um longo passeio pela floresta,sentei-me sobre um velho tronco de árvore e entre o canto das aves e a magia da natureza estudei um pouco de antropologia social e cultural.Uma melhor intervenção social passa por uma maior consciência ecológica.Quando verdadeiramente amamos os outros e nos amamos a nós mesmos projetamos esse amor sobre o ambiente que nos rodeia.Porque o amor é o único sentimento que dá sentido á vida...mesmo quando nos provoca dor, dúvida e inquietação...

Estive a ver um documentário na TV sobre o Mico dourado na floresta brasileira...

Um abraço de Portugal