sábado, 13 de setembro de 2008

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Crônica da Tarde
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Fernando Campanella
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O BEM-TE-VI E A FLAUTA


Fui revisitar, pela manhã, um conservatório de música da cidade.Quando adentrei seus recintos, senti, como sempre, meu espírito vagar, divagar, em eras passadas, ao som de flautas, pianos, com a música eterna, a alma ritmada dos mestres, pairando nos corredores, escoando pelos beirais.
Escolas de música, assim como as bibliotecas, sempre exerceram um fascínio sobre mim, lembrando-me o trabalho dos copistas que preservaram o tesouro do pensamento clássico da total destruição pelos bárbaros. Nelas também se resguarda uma tradição, uma memória cultural que acolhe as almas sensíveis, sedentas do que o espírito da arte nos legou.
Quando me pesam os ruídos da modernidade, do cotidiano, ali me refugio, por uns instantes, forjando, sempre, alguma desculpa a mim mesmo, como rever algum amigo que lá trabalhe, descobrir alguma exposição de arte... mas sei que o que realmente me motiva é a necessidade de uma suave e mais sadia alienação.
Na visita de hoje, algum aluno tocava ‘Clair de Lune’ ao piano, outro esforçava-se em uma peça de Lully, adaptada para flauta, um grupo coral ensaiava um madrigal do século XV. Diferentes estilos, um só espírito, uma só intenção: tocar, cantar, celebrar a vida, como o ofício das ancestrais, incorrigíveis, cigarras.
Visitar tais templos da música sempre me traz essas já conhecidas surpresas, a harmonia sempre reencontrada, e isso já seria suficiente para reabastecer meu dia.
Mas hoje, inesperadamente, um bem-te-vi pousou na janela do corredor da escola, perto da sala de aulas de flauta doce. Demorou-se ali por alguns segundos, coçou as penas com o bico, e, de repente, fez gracioso movimento que, à minha romântica percepção, mais pareceu-me uma cena de bucólica dança. Talvez, como eu, atraído pelos ecos de longínquos pastores, viria o bichinho ali, ocasionalmente, bebericar daquelas fontes, daqueles doces sonoros festivais. Ou, quem sabe, também como eu, a ave se encontrasse meio desencantado , ás vezes, com a poluição sonora, os fios e a agitação das cidades modernas, ali buscando conforto.
Quem sabe? Mas não importa. A atmosfera do local, a convivência entre as eras musicais, a serenidade possível de minha alma, o som da flauta, e mais o bem-te-vi a ouvir, a dançar, tudo transformou-se em minha mente, na manhã,em uma roda holística, encantada. Síntese divina? Talvez. Natureza e arte: belos extremos que se tocam.
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(Fernando Campanella, 10 de setembro de 2008)
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