domingo, 10 de agosto de 2008

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Pedro Lyra: Poeta do amor e do pensamento
Entrevista exclusiva para o Jornal Poiésis. Doutor em Poética, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pedro Lyra é natural de Fortaleza-CE. Uma referência na poesia brasileira do pós-modernismo. Atual e inovador. Tradicional e revolucionário. Ele fala ao Jornal Poiésis sobre sua obra e faz reflexões sobre os seus modos de escritura, revelando aspectos bem peculiares do processo de criação poética.
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Poiésis: Como é que você, empregando a disciplina clássica do soneto e retornando a desgastada temática do amor, consegue conciliar o tradicional e o revolucionário, criando uma poesia com tanta força e beleza?
Pedro Lyra – Antes de tudo, meu caro Sylvio: muito grato pelo tom desta pergunta inicial. É a síntese de uma crítica altamente valorativa. Porque não é tão simples “conciliar o tradicional e o revolucionário”, como você considera, e afirma que o consegui. Ainda mais explorando “a desgastada temática do amor” e “empregando a disciplina clássica do soneto”. E você ainda acrescenta que o fiz “com tanta força e beleza”. Bom, eu conto no depoimento “A gênese de uma poética do amor”, ao final do livro (Desafio – Uma poética do amor, de 1991), como o escrevi. Em síntese: estava sozinho em Portugal, no inverno de 1986. Numa gélida madrugada, fui como que sacudido pela lembrança de amores passados. Decidi na hora escrever um poema para cada uma – e espontaneamente brotou na forma do soneto. Como você observa, tanto a forma quanto o tema estão desgastados. Então resolvi reestruturar o soneto, através de dois procedimentos básicos: flexibilizar a estrofação, evitando a fórmula 4-4-3-3, e decompor o verso, conforme o ritmo e/ou a sintaxe. O resultado me pareceu realmente algo novo: quanto à forma, alguns poetas já haviam decomposto o verso, mas ninguém antes havia alterado o modelo; quanto ao tema, superados são apenas os históricos, não os eternos, como o amor. Desde que o poeta seja capaz de acrescentar algo pessoal ao que já foi revelado sobre um tema eterno, seu poema supera esse desgaste. A julgar pela fortuna crítica desse livro, posso acreditar que consegui.
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Jornal Poiésis: É verdade que sua poesia é um percurso através do seu próprio eu, uma espécie de autobiografia?
Pedro Lyra – Alguém já afirmou que todo poema lírico é autobiográfico. Ele se desenrola na imaginação, mas decola sempre de uma vivência pessoal. No caso do poema de amor, ele se limita a três motivos, centrados no desejo: 1) a falta – que é o desejo frustrado; 2) a conquista – que é o desejo realizado; 3) a perda – que é o desejo contrariado. Já que a falta e a perda se equivalem, temos, portanto apenas dois tipos básicos de poema amoroso: o de celebração, muito raro, porque, estando satisfeito, o indivíduo se entrega à fruição da hora; e o de lamento, muito mais freqüente, porque, estando insatisfeito, o individuo sofre a necessidade de preencher o vazio existencial, e a única criação humana capaz disso é a arte: todas as outras formas (viagem, trabalho e, principalmente, um novo e imediato amor) são ilusórias. Mas esse tom autobiográfico é apenas do livro Desafio (e de Contágio, de 1993, subintitulado exatamente “Poesia do desejo”). Porque os outros são diferentes, e vão do satírico ao dramático, do metafísico ao épico – como aqui mesmo neste jornal já foi assinalado pelo poeta e crítico Fernando Py. Creio que todos estão bem definidos nos subtítulos: Decisão (de 1983) é uma coletânea de “Poemas dialéticos”, contestando a sociedade burguesa; Errância (de 1996) é “Uma alegoria trans-histórica”, que põe em confronto o pré-histórico e o pós-moderno, numa tentativa de caracterização do trajeto da nossa civilização; Jogo (de 1998) é “Um delírio erótico-metafísico-econômico”, em que um jogador, desesperado por estar perdendo tanto, vai refletindo aleatoriamente sobre o amor, sobre o destino e sobre sua própria situação; Confronto (de 2005) é “Um diálogo com Deus”, questionando todos os magnos problemas vinculados à idéia de sua existência, como a origem do universo, a condição da Terra, o sentido da vida e o destino do ser; Argumento (de 2006) é uma coletânea de “Poemythos globais”, abordando em poemas curtos os três “mitos” da nossa hora – a globalização, o terrorismo e o liberalismo.
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Jornal Poiésis: Você é mesmo esse "homo eroticus" disseminado através de sua poesia?
Pedro Lyra – Suponho que o “homo sapiens”, que antes foi o “homo faber”, seja também um “homo eroticus”, ou nossa espécie já teria se extinguido. Portanto, como qualquer ser humano normal, eu sou também um “homo eroticus”. E como a de qualquer outro poeta, minha poesia amorosa deriva dos meus desejos e suas respectivas vivências. Mas, pelo que afirmei na resposta anterior, talvez eu seja também um “homo criticus”,.. Entre a de sentimento e a de pensamento, creio que minha poesia se identifique mais como de pensamento. Mesmo em Desafio: a maior parte é de sonetos sobre amor, não de amor, como afirmo no citado depoimento.
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Jornal Poiésis: A mulher é, na sua poesia, mero objeto do prazer, ou o pano de fundo de um lirismo derramado?
Pedro Lyra – Agora peço-lhe permissão para discordar das suas duas suposições: nem um “mero objeto do prazer”, nem “o pano de fundo de um lirismo derramado”. Quanto à primeira: em Desafio, há 5 tipos de sonetos: 1) conceitual – em que se define uma face do amor; 2) narrativo – em que se conta um caso de amor: 3) confessional – em que fala o homem, sempre solicitando esclarecimentos à musa; 4) analítico – em que fala a mulher, sempre instigando o homem, ora como musa, ora como fêmea; 5) dialogal – em que poeta e musa se debatem em torno do amor. Em todos os sonetos da dicção feminina, a mulher/musa fala sempre com a pretensa voz da sabedoria. Portanto, jamais ela aparece como mero objeto de prazer. Quanto à segunda: em poemas dessa natureza, em que predomina o tom reflexivo, jamais se pode ter um lirismo derramado: é sempre contido, até mesmo pelas imposições da forma do soneto. No livro Contágio, uma coletânea de forma livre, há alguns poemas relativamente longos, mas nenhum dos meus críticos jamais os considerou “derramados”. Indico os dois livros já publicados sobre minha poesia: Uma palavra marcada, da professora Hermínia Lima, de 1999; e Uma poesia dialógica, do já citado Fernando Py, de 2005.
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Jornal Poiésis: Você fala de amor, de morte, da dor, do prazer, da vida em suma, como se se esvaísse por uma veia rasgada. O que é vivência e o que é leitura nesse contínuo esvair-se?
Pedro Lyra – Todo poeta fala dessas coisas – e praticamente apenas dessas coisas, pois que não há tantas outras ou a condição humana se resume mesmo nelas. No meu caso, eu incluiria também a problemática social. Mas você me acrescenta um esvair-se de substância tornada poética como se “por uma veia rasgada”. Tomo-o como outro grande elogio, e lhe agradeço. Pois isso implica uma autenticidade de emoção criadora – imaginária ou sentida, tanto faz. E a obra de todo poeta culto é um misto de vivência e leitura – e a minha também é. Nem sempre essas duas grandes fontes aparecem equilibradas. Decisão, por exemplo, é um livro de poemas políticos, e jamais tive a menor participação na vida política do nosso país: tenho nojo: portanto, é mais um fruto de leitura, observação e reflexão. Já Contágio parece o oposto: são poemas explorando aquelas três formas do desejo, dispensando leituras prévias. Desafio talvez seja o meu livro em que aquelas duas fontes aparecem mais próximas de um equilíbrio. Já disse como ele surgiu: de vivências passadas. E acrescento: ele abre com uma “Folha de Créditos”, em que registro meu débito para com poetas da minha preferência. São epígrafes de 21 deles, algumas retomadas quase como paráfrases num ou noutro soneto.
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Jornal Poiésis: Onde você situa Raul de Leoni na poesia nacional, e a Neide Archanjo?
Pedro Lyra – Luz mediterrânea é um dos meus livros preferidos, e assim aparece num tópico do meu Orkut. Tenho todas as suas edições numa prateleira especial da minha biblioteca e organizei duas delas: uma para a Topbooks, com comentários sobre elas, em 1996, outra para a Global, na coleção “Os melhores poemas”, no ano 2000. Nos prefácios, eu o situo como um eclético pré-moderno (não apenas pela contingência temporal mas, sobretudo, pela reivindicação da liberdade de posicionamento, pelo polimetrismo bem próximo do versilibrismo, pelas antecipações de certas configurações sociais de nossa época etc.), com estilemas de todas as estéticas anteriores: ele é, simultaneamente, também neo-clássico (na intenção filosófica, na altivez de espírito, na clareza da enunciação, na depuração da linguagem etc.); neo-romântico (embora tenha publicado apenas um poema de amor – na concepção idealista de vida, em certa melancolia diante do ideal inatingível, numa vaga idealização do passado etc.); neo-parnasiano (embora não tenha escrito um só poema tipicamente escolástico – no requinte formal, no distanciamento emotivo, na opção pelo soneto mesmo não-alexandrino etc.) e, talvez mais que todos, neo-simbolista (na musicalidade da expressão, em certa diluição dos referentes, no ritmo melodioso e às vezes encantatório, na dicção penumbrista, na ambigüidade do misticismo, no gosto pela alegorização etc.). Acho estranho que alguém ainda o considere simplesmente como parnasiano, quando esta é a nota de menor presença. Quanto à Neide Archanjo, ela é um dos nomes paradigmáticos da Geração-60. Na introdução a Sincretismo (Topbooks, 1995), livro em que tento configurar essa geração, que é a minha, apresento sua poesia com três grandes segmentos: 1º) a “Tradição discursiva”, de poetas fiéis ao verso e à imagem; 2º) o “Semioticismo vanguardista”, das poéticas experimentalistas do Poema/Processo e da Arte-Postal; 3º) a “Variante alternativa”, dos poetas “marginais”. Neide se vincula ao primeiro, em que identifico quatro vertentes básicas: 1ª) a “Herança lírica”, 2ª) o “Protesto social”, 3ª) a “Explosão épica”, 4ª) a “Convicção metapoética”. E ela explora todas essas quatro vertentes: a segunda com Poesia na praça e a terceira com Quixote, tango e fox-trote; a primeira e a última, com o restante de sua vasta e bela obra.
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Concluo com um reconhecido abraço aos leitores de Poiesis - um jornal que resiste às forças da anti-poesia.
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Agradecimento especial ao meu amigo poeta Sylvio Adalberto, Presidente da Academia Brasileira de Poesia - Casa de Raul de Leoni, por ter-me permitido publicar essa entrevista com o Pedro Lyra, poeta cearense, conterrâneo, que tanto amo e admiro.
E VIVA A POESIA!
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Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, Sylvia. Como cearense só posso aplaudir de pé a sua iniciativa em publicar essa entrevista com o Pedro Lira. Fale mais dele, pos o povp precisa saber que esse cearense é grande1 Bjo

Marta