sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Ausência



Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a branca, tão pegada, aconchegada aos meus braços,
Que rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque a ausência assimilada
Ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

Vendaval


quarta-feira, 23 de maio de 2012

As duas faces

Imagem: Akmal Noor



- Olhe bem, cidadão, e veja
o mundo que construímos para os seus filhos:
absoluta tranquilidade nas ruas;
nenhuma voz de discordância;
todos num produtivo labor.

É paz. É ordem. É trabalho.
E motivo nenhum para insatisfação.

- Vejo:
paz, ordem, trabalho.

Seu mundo é seguro como um quartel
e a vida surgiu para o risco de vivê-la.

Nem as folhas das árvores balançam: mas eu
sonho com um mundo de movimento equilibrado
não com a anulação do movimento;

mesmo as pedras obedecem: mas eu quero
um mundo onde os contrários se harmonizem
não a eliminação dos contrários;

até as almas suam: mas eu luto por um mundo
não apenas onde o homem realize atividades
também onde as atividades realizem o homem.

Um mundo
de paz, de ordem, de trabalho.

(E de justiça.
                                       E liberdade.
                                                                                 E de prazer.)

Pedro Lyra

In 50 Poemas Escolhidos pelo Autor,
Edições Galo Branco, 2011.

sábado, 28 de abril de 2012

Hilda Hilst

Imagem: Ângela Felipe
(Cumplicidade)


Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.


Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)


Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel


Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.


Hilda Hilst
(1930-2004)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O constante diálogo



Há tantos diálogos 
 Diálogo com o ser amado
 o semelhante
 o diferente
 o indiferente
 o oposto
 o adversário
 o surdo-mudo
 o possesso
 o irracional 
 o vegetal 
 o mineral 
 o inominado


 Diálogo consigo mesmo
 com a noite
 os astros
 os mortos
 as ideias
 o sonho
 o passado
 o mais que futuro


 Escolhe teu diálogo
 e
 tua melhor palavra
 ou teu melhor silêncio.
 Mesmo no silêncio
 e com o silêncio
 dialogamos.


 Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera' 


 http://www.citador.pt/poemas/o-constante-dialogo-carlos-drummond-de-andrade

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Bertrand Russell

**
Procurei o amor, primeiro, porque ele traz êxtase – êxtase tão imenso que eu ofereceria todo o resto da minha vida em troca de umas poucas horas desse prazer. Eu o procurei, também, porque ele ameniza a solidão – aquela terrível solidão na qual uma consciência em pedaços se paralisa nas franjas do mundo num insondável abismo frio e sem vida. Eu o busquei, finalmente, porque na união do amor eu vislumbrei, em mística miniatura, a suposta visão do paraíso que santos e poetas imaginaram. Isto foi o que procurei, e embora possa parecer demasiado bom para a vida humana, foi o que – finalmente – eu encontrei.
**
Bertrand Russell

domingo, 19 de junho de 2011





Arrufos

Não há no mundo quem amantes visse
Que se quisessem como nos queremos;
Mas hoje uma questiúncula tivemos
Por um caprichosinho, uma tolice.


- Acabemos com isto! ela me disse,
E eu respondi-lhe assim: - Pois acabemos!
- E fiz o que se faz em tais extremos:
Peguei no meu chapéu com fanfarrice,


E, dando um gesto de desdém profundo,
Saí cantarolando. Está bem visto
Que a forma ali contradizia o fundo.


Ela escreveu. Voltei. Nem Jesus Cristo,
Nem minha Mãe, voltando agora ao mundo,
Foram capazes de acabar com isto!


Artur Azevedo
♥♥●•·


Por Decoro


Quando me esperas, palpitando amores,
E os grossos lábios úmidos me estendes,
E do teu corpo cálido desprendes
Desconhecido olor de estranhas flores;


Quando, toda suspiros e fervores,
Nesta prisão de músculos te prendes,
E aos meus beijos de sátiro te rendes,
Furtando as rosas as púrpureas cores;


Os olhos teus, inexpressivamente,
Entrefechados, lânguidos, tranquilos,
Olham, meu doce amor, de tal maneira,


Que, se olhassem assim, publicamente,
Deveria, perdoa-me, cobri-los
Uma discreta folha de parreira.


Artur Azevedo

* Wiliam Adolphe Bouguereau - Idyll


segunda-feira, 21 de março de 2011

Um sonho num sonho




Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.
Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?



Edgar Allan Poe
(1809-1849)


SOS
   Pintura de Evelyn De Morgan

Hei de amoldar-me a ti como o rio a seu leito



Hei de amoldar-me a ti como o rio a seu leito,
como o mar a sua praia, como a espada a sua bainha.
Hei de correr em ti, hei de cantar em ti,
hei de guardar-me em ti de agora em diante.
Fora de ti há de me sobrar o mundo, como ao rio sobra
o ar, ao mar a terra, à espada a mesa do convite.
Dentro de ti não há de me faltar brancura do limo para
minha corrente, perfil de vento para minhas ondas,
ajuste e repouso para meu aço.
Dentro de ti está tudo; fora de ti não há nada.
Tudo o que tu és está em seu lugar,
tudo o que não sejas tu me há de ser vão.
Caibo em ti, estou feita a tua medida;
mas se for em mim onde algo falte, cresço...
Se for em mim onde algo sobre, corto.

Dulce María Loynaz


* Pintura de Alex Grey

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Um diálogo com Deus


Confronto


Um diálogo com Deus


LV)  Da Humana Condição

 Só isto, a vida
– ou nisto resumida.
Só isto, a vida humana:
um breve rastejar, entre o Big Bang e o Apocalipse
(se é que houve um
e que haverá o outro).
Certo, o rastejar.
......................................................................................

Mas se teu Reino
não é uma recompensa nem um prêmio
e sim uma construção,
e não está num Após nem num Além
mas num Agora e num Aqui
– em nós mesmos –
e temos nós que construí-lo dia a dia,
vivendo como vivemos
e sendo como somos, então
Inferno e Paraíso são apenas projeções,
não transcendentes redutos:
simples imagens
de nosso estar-na-Terra,
de nosso ser-com-os-outros.
E não serás um Ser (em si):
apenas uma Idéia (em nós).
E a Eternidade é somente um hiper-agora, impassável,
o sempre-presente.
E o Infinito é somente um hiper-aqui, impreenchível,
o todo-em-volta.
E o Inferno é mesmo os outros.
O Paraíso também.
E o ser humano é mesmo este misto desequilibrado entre o sublime e o mesquinho,
breve lampejo
entre uma treva sem princípio e uma treva sem final.
E somos livres,
apenas do futuro ignorantes,
sem mistério a desvendar.
E não há prêmio nem castigo, transferidos:
apenas opções e conseqüências, imediatas.
E a vida é este intermitente desafio:
o aproveitamento/desperdício de energia e liberdade,
sem hipótese de reservas;
esta cega seqüência de desejo e luta, 
o insaciável desejo
e a incessante luta;
para a conquista ou para a falta,
a precária conquista
ou a freqüente falta.
E, de tentativa em tentativa,
o frustrante desfrute
ou a plena frustração.
E, na falência da aventura,
a certa perda.
E o desengano.
E a decomposição,
em pó ou cinza.
E o Nada.
Nada além, aquém.
E a Existência é o todo do tempo.
E a Terra é o todo do espaço.
E não precisa nem da idéia de Eternidade e nem da de Infinito
(exceto os do Sonho).
E tudo é mortal, exceto o trans-viável.
E não há Causa primeira nem Sentido último,
que é sempre um trânsito,
de sempre,
para sempre,
e temos só que nos equilibrar.
E esta é a nossa condição,
sem pessoal ou coletiva culpa.
É parca,
é muito parca.
E não muda
por mais que a gente mude.

Mas, descendente de símios,
podia o homem ser mais nobre?
Rebento de uma explosão,
podia o mundo ser mais firme?
Originária do acaso,
podia a vida ser mais justa?
E se, sem Ti, não tem sentido,
talvez nem careça:
basta ter duração.
E que tudo se esgote em seu lampejo, sem reflexo.
E, no lugar da transcendência da alma,
a imanência do corpo.
E, por sobre o consumo do tangível,
a latência do inefável.
E é esse o seu sentido.
Pode ser muito pobre,
mas é o que ela ostenta:
o da luminescência, ao invés do da Luz.
Temos só de evitar que se desfaça aos ventos em contrário.
E estamos, apenas.
E passamos.
Pior é que sofremos que não basta estar.
E que é penoso passar.

Ou nossa vida é mesmo esta constante peregrinação
e só descansaremos quando voltarmos à origem?

Mas o alvo está à vista:
que cada um aponte suas armas.

Pedro Lyra


* Pintura de Alex Grey

Soneto de Constatação — XXVII




Amor — única síntese da vida.
E o só se atinge por curvas, de viés:
se se quiser amar
— tem-se que conceder;
se se quer ser amado
— tem-se que denegar.


Infunde náusea ou júbilo, sem meio-termo.
Se às vezes satisfaz, quase sempre contraria:
queremos reter o gozo
— desliza na fruição;
queremos deter a dor
— se petrifica na mágoa.


Põe um sentido à vida
fugaz — por já passando;
pospõe-lhe um sem-sentido
constante — por presente.
E nos larga no éter, sem referência e sem volta.


Amante
não se sabe o que fazer com esta graça.
Amado
não se sabe o que fazer com esta fonte.


Triste: só o não-amante sabe ser amado.

Pedro Lyra

Poemas da Madrugada



ÚLTIMO ROUND


O vento que de verde tudo varre
não varre esta floresta onde eu habito.
Espana roxas nódoas de um espárringue
que sou eu mesmo a rir por esses ringues.

Porradas que me dou? Mero detalhe,
de quem passou a vida sem ter sido
sendo, o sabido súdito do anárquico.
Não fui, não sou, não quero ser doído.

O menestrel choroso? Este não vale,
perdeu-se pelos socos de outras divas
em noites desbotadas na paisagem.

Mas então, o que fica dessa trilha?
ora, amigo, nocautes dessa aragem
varrida nos cruzados descaminhos.

Anibal Beça




PLENILÚNIO


Vês este céu tão límpido e constelado
E este luar que em fúlgida cascata,
Cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...
Vês este céu de mármore azulado...


Vês este campo intérmino, encharcado
Da luz que a lua aos páramos desata...
Vês este véu que branco se dilata
Pelo verdor do campo iluminado...


Vês estes rios, tão fosforescentes,
Cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
Vês estes rios cheios de ardentias...


Vês esta mole e transparente gaze...
Pois é, como isso me parecem quase
Iguais, assim, às nossas alegrias!


Cruz e Souza


* Imagem da net


sábado, 15 de janeiro de 2011

Frase da noite ( para meditar )


É preciso lentes
que ultrapassem
o aparente.

Luiz Coronel, poeta brasileiro

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Soneto com Estrambote Enviesado



Alfaiate de mim costuro a roupa
que cabe ao figurino que me coube.

Só meu verso protege essa amargura
desfiada de dia ao sol veloz,
para à noite tecer nova textura,
novelo de silêncio ao rés da voz.

Enxoval construído nessa usura
solitária de andaimes, num retrós
de linha vertical, que se pendura
na pênsil teia atada, fio em foz

desse rio agulha que me costura
ao rendilhado de águas tropicais,
que sabe de saudades no meu cais.

Viageiro de uma sanha que me traz
sempre de volta ao tear do meu destino
na seda depressiva me assassino.

Anibal Beça



* Imagem: O Poeta Viageiro - Gustave Moreau